Você já pensou sobre a apropriação cultural nos cabelos?

Gabriely Araujo
Lado M

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Os meus olhos coloridos
Me fazem refletir
Eu estou sempre na minha
E não posso mais fugir
Meu cabelo enrolado
Todos querem imitar
Eles estão baratinados
Também querem enrolar
Você ri da minha roupa
Você ri do meu cabelo
Você ri da minha pele
Você ri do meu sorriso
A verdade é que você,
Tem sangue crioulo
Tem cabelo duro
Sarará crioulo

Conhecida na voz de Sandra de Sá, a música ‘Meu olhos coloridos’ foi escrita pelo compositor Macau, depois de ter sido detido à força quando estava em uma exposição escolar no Rio de Janeiro

Nas páginas de blogs e de revistas, turbantes, tranças e dreads são tendência. Não é difícil encontrar tutoriais e vídeos explicando como fazê-los.

Na última semana de moda de Paris, que ocorreu no início de outubro, a inspiração do estilista Valentino era o continente africano. Nos cabelos das modelos, tranças nagô. As protagonistas na passarela, porém, eram em sua maioria brancas. Por isso, o empresário foi acusado de apropriação cultural.

A apropriação cultural acontece quando símbolos de uma cultura são adotados por quem não pertence a ela. Este processo é mais evidente em relação a uma cultura minoritária por uma cultura dominante. Acessórios, roupas, símbolos religiosos, tradições e manifestações artísticas são explorados e seu grupo social de origem é discriminado e marginalizado.

O dread, por exemplo, é característico de indianos, africanos e outras culturas não-ocidentais, e ficou conhecido nos cabelos dos líderes religiosos rastafáris na Jamaica.

Já o turbante é ornamento e de símbolo religioso em várias culturas, como a indiana e a negra. No Brasil, o uso do adereço tem origem africana, com várias variações de cores e amarrações. Para mulheres negras, o turbante ainda representa a luta, resistência e identidade. A mulher que ficou internacionalmente conhecida pelo turbante, no entanto, foi a atriz luso-brasileira Carmen Miranda, em filmes e musicais que fizeram uma representação da mulher brasileira.

“A estética negra não está em negociação, nunca fomos as bonitas de nenhum espaço, depois de uma intensa luta para reverter anos de subjulgamento que acabou com a autoestima da população negra, hoje temos os blacks ocupando todos os espaços, os dreads, as tranças e os turbantes sendo ostentados, carregados de simbolismos e identidade religiosa e é isso que deve ser compreendido”, explica Eliane Oliveira, pesquisadora do Núcleo De Estudos Interdisciplinares Afro Brasileiros da Universidade Estadual de Maringá.

A defesa e retomada do uso destes elementos está atrelada ao empoderamento da cultura negra em nosso país. A volta dos cachos e do cabelo crespo natural, black e tranças é símbolo de resistência. Considerá-los apenas uma tendência ou moda é arriscar esta representatividade, fundamentais para a construção da identidade.

“Interação cultural sem desconstrução de privilégios não existe, o que acaba ocorrendo é uma negação do sujeito criador, uma tentativa de anular ideologicamente aquele que possui uma concepção de mundo diferente ao que é considerado ideal e desejável”, argumenta Eliane.

Casos de racismo e diferenciação ainda são evidentes em relação aos cabelos. Negras e negros que usam dreads e tranças ainda são vistos como mal cuidados, sujos. A cantora e atriz negra Zendaya Coleman, por exemplo, foi caracterizada como “cheirando óleo de patchouli (essência considerada ‘exótica’) ou maconha” no programa de televisão norteamericano Fashion Police por ter usado dreadlocks no tapete vermelho da cerimônia do Oscar deste ano.

O papel da moda para a aceitação e empoderamento é evidente, mas é preciso entender o protagonismo de um grupo e o processo de reflexão e resgate de identidade que ocorre neste processo. “Para muitas pessoas, a aceitação do próprio cabelo é ponto de partida para compreender a sua história e identidade de uma maneira mais ampla, levando em conta a ancestralidade e a valorização das suas origens”, defende Nanda Cury, que escreve no Blog das Cabeludas, que mostra histórias de mulheres que têm cabelos crespos e estimula a assumirem o cabelo natural.

“O amor próprio é uma micro revolução. É desse empoderamento que estou falando, o pessoal. Assumir o cabelo crespo pode ser ponto de partida para discutir várias outras questões, mas em muitos casos as pessoas só querem se sentir bem com elas mesmas. Isso tem a ver com moda e com representatividade e também tem impacto social e econômico”, conclui.

Por isso assumir o crespo, usar dreads, tranças ou turbante não é uma simples mudança de visual. É a expressão cultural e social de quem ainda luta para ser ouvido. Usar sem fazer parte desses grupos é negar o passado histórico e reforçar estereótipos.

Para saber mais sobre apropriação cultural, o Não me Kahlo tem um FAQ bem legal.

Texto originalmente publicado em outubro de 2015

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Gabriely Araujo
Lado M
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Jornalista e professora de língua portuguesa. Um salve às metamorfoses!