Você precisa ler Americanah, de Chimamanda Adichie

Cê Oliveira
Lado M

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Ifemelu odiava ir a Trenton para trançar o cabelo. Uma viagem de trem gasta para ir aos arredores de Princeton, Nova Jersey, para adentrar num salão brega, demasiado abafado, e ter seu cabelo crespo puxado por mãos pesadas por horas e horas. É dessa cena que se inicia o mais novo romance da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, Americanah, vencedor do National Book Critics Circle Award e eleito uns dos 10 melhores livros do ano pela NYTimes Book Review. O livro faz jus ao renome: ele é um tremendo tapa na cara sobre a questão racial nos Estados Unidos e Europa e, por que não, aqui no Brasil.

Claro, não temos essa noção quando abrimos o primeiro capítulo para essa cena. Entretanto, conforme a história se desenvolve, o racismo cotidiano nos é escancarado de formas às vezes nem tão sutis ou agradáveis, principalmente para quem não sofre dele (vulgo, pessoas brancas). Acompanhamos a trajetória de dois protagonistas, Ifemelu e Obinze, dois jovens amantes nigerianos nos anos 90 que acabam se separando por circunstâncias da vida e se reencontram muitos anos depois numa Nigéria transformada, assim como eles, pela ação do tempo. Alterando entre focos narrativos, dando destaque para o ponto de vista feminino de Ifemelu, o livro consegue harmonizar a história de amor dos dois, que consiste numa profunda ligação afetiva, com uma crítica social poderosa acerca de todas as situações adversas que negros, americanos ou não, têm de enfrentar mundo afora.

Ifemelu talvez seja a personagem mais difícil de caracterizar, justamente por ser uma personagem tão humana, que comete erros, falhas e não permanece inteiramente forte o tempo todo. O seu maior diferencial, porém, é quando a comparamos com as outras personagens femininas do livro, que são caricaturadas de propósito para mostrar o quão enraizado a estrutura patriarcal está na sociedade contemporânea. Ifemelu, diferente de suas antigas amigas de colégio, de sua tia mais próxima (que muito tarde resolve abrir as asas de sua própria independência), e até mesmo das cabeleireiras que a atendem no salão, não se esconde na sombra de uma figura masculina. Ela é curiosa e inquisitiva, o que na infância e ao longo da vida, a levam a receber reprimendas e olhares tortos de diversas partes que se esforçam, de maneira quase inconsciente, para manter a ordem vigente.

Quando Ifemelu chega nos Estados Unidos para completar seus estudos — com uma mala cheia de casacos em pleno verão e uma imagem completamente diferente do que era a verdadeira América — ela passa a se redescobrir não só como mulher, mas como uma mulher negra, o que em seu país de origem passava quase despercebido. Ela começa a entender que existem diferentes escalas de tons de pele e que o fato da sua ser tão escura automaticamente já vinha carregada de estigmas, evidenciados na forma como ela e sua família são tratadas e atendidas nos locais. Seu primo Dike enfrenta problemas na escola por sua cor, ela mesma é levada a alisar o cabelo para se dar melhor no emprego — que ela conseguiu após a indicação de seu namorado rico e branco. Antes disso, estava desempregada há meses. O seu verdadeiro empoderamento só surge quando ela resolve lutar contra tudo isso, deixando o seu Black Power vivo, seu sotaque nigeriano evidente e iniciando um ousado blog sobre questões raciais que logo se torna um sucesso.

Da parte de Obinze, os desafios da imigração ilegal são o grande assunto latente. Ele, que sempre teve uma vida confortável e nasceu num berço onde o olhar crítico era louvado, se vê desacostumado com uma vida marginalizada, à beira da sociedade e da lei, vivendo de favores de velhos amigos enquanto tenta começar da estaca zero na Inglaterra. Mesmo quando volta à Nigéria e se torna um homem rico e bem-sucedido, Obinze nos mostra com certo desconforto sua nova realidade, ao lado de pessoas interesseiras e servientes. Sua esposa Kosi é a típica nigeriana do lar que só pensa em agradá-lo, manter o padrão de vida e a família unida, sendo assim, como tantas outras esposas do colega do marido, submissa.

Americanah é uma obra de ficção que não só imita a realidade como a critica com um olhar afiado, uma pitada de drama e humor. Perpassa as questões de raça, cultura, imigração, feminismo de forma que o leitor possa sentir o peso, junto ao do livro, de suas próprias ações e privilégios e como eles se refletem a sua volta. Nem todos têm a mesma sorte, nem todos são tratados iguais, e sim, a cor da pele e o seu lugar de origem tem a ver com isso. Como Ifemelu brinca em um dos posts do seu blog (aliás, não dá para escolher qual o melhor ou mais agudo porque todos eles acertam na mosca), “Para outros negros não americanos: nos Estados Unidos, você é negro, baby”.

Originally published at www.siteladom.com.br on June 9, 2016.

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Cê Oliveira
Lado M
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Trans n-b. Bacharel em Letras pela USP. Edito uns livros, escrevo uns textos. - Rascunhos/vozes da minha cabeça: itsweirdtosay.tumblr.com