Venezuela: o reflexo da crise no mercado de cervejas artesanais do país

Victor Kling
Ladobier
Published in
7 min readJun 24, 2019

É fascinante perceber como a revolução cervejeira na América Latina vem sendo muito similar ao processo descrito por Steve Hindy nos Estados Unidos. Apesar da Venezuela ainda não ter atingido o mesmo nível de desenvolvimento no setor craft, como a maioria de seus vizinhos, alguns fatos como: a organização de cervejeiros caseiros em micro-cervejarias, depois em associações, que começam a pleitear mudanças na lei para poderem crescer, remetem bastante àquela história.

Um mercado ainda muito jovem

A produção independente de cerveja na Venezuela teve início em meados dos anos 2000, seguindo os mesmos passos dos demais países da região. Guillermo Garcia, sócio da cervejaria Pisse des Gottes, criada em 2008, conta que na época, Hefeweizen era considerado um estilo high-end no país, e uma IPA então, coisa de outro planeta. O ex-músico é bastante crítico em relação à situação política da Venezuela. Além de ter que enfrentar uma inflação que já ultrapassou mais de um milhão por cento no índice acumulado em 2018, ele afirma que o maior desafio tem sido lidar com o controle sobre o câmbio (vigente desde 2003), que impede o acesso fácil e barato às matérias primas de qualidade.

“As leis sempre foram iguais. Se você produz menos de 24 mil litros por ano, você não é reconhecido pela lei. Nesta difícil situação econômica, é complicado para muitos cumprir com esse número. Adoraríamos um marco legal no qual pudéssemos operar pagando impostos de acordo com a nossa capacidade. Isso seria um mundo ideal. Falta pouco para isso.”

Atualmente o conceito de cerveja artesanal não existe na lei. Outros marcos legais também travam o avanço do setor em relação ao resto do mundo, como a proibição de servir cerveja no local onde se fabrica. Dessa forma, Brewpubs com taproom são ilegais. Alexander Jimenez, fundador da Norte del Sur comenta que as macrocervejarias seguem mantendo práticas de monopólio e gerando barreiras para que as artesanais entrem no mercado.

“Eles não estão interessados em aproximar-se do movimento artesanal, muito menos em compartilhar conhecimento ou cultura. Estamos batalhando para que o conceito de cerveja artesanal seja incluído na lei. Também para que a cerveja possa ser comercializada e consumida no local onde é produzida, que os impostos sejam estabelecidos de acordo com os volumes de produção e que possamos distribuir diretamente ao varejo.”

O atual estado do mercado cervejeiro venezuelano

A ACAV, Associação de Cervejarias Artesanais da Venezuela passa por um momento conturbado. Eleições foram realizadas para mudar a direção da instituição, mas apesar da vitória, os estatutos novos não foram implementados. Ironicamente, na prática há dois presidentes em exercício e muita incerteza no ar, o que acaba deslegitimizando a atuação da mesma junto às cervejarias.

Por motivos como este, obter informações oficiais tem sido difícil nos últimos tempos. Grande parte das fábricas fecharam as portas, e algumas nano-cervejarias surgiram para suprir demandas muito pontuais. Não há dados sobre qual seria o número de microcervejarias com produção ativa no país, apesar de em 2017 a agência Reuters ter apurado que seriam cerca de 30. Este número é extremamente baixo, se comparado ao Uruguai, por exemplo, um país de dimensões territoriais menores e que em 2017 contabilizou aproximadamente 75 marcas artesanais, com uma projeção ainda de crescimento de 30% para o ano seguinte. No Brasil, as cifras oficiais de 2018 foram de 835 cervejarias, atingindo o patamar de 1000 neste ano de 2019.

As estatísticas de consumo per capita são aproximadas, e baseiam-se na publicação da Câmara de fabricantes de cerveja da Venezuela, que engloba a Cervecería Regional e a Cervecería Polar, as duas maiores produtoras do país. De 2009 a 2018, o consumo caiu de 70 litros para 30 litros per capita. A produção das macrocervejarias teve uma queda considerável, e passou de 21 milhões de hectolitros para 9 milhões, no mesmo período. A porcentagem estimada do share artesanal nesse montante é de 0,06% para 2018.

Em fevereiro deste ano no Panamá, diversas associações cervejeiras de países da América do Sul e Central se reuniram para criar o chamado Bloco Cervejeiro Latino-Americano. A iniciativa pretende reforçar a troca de experiências e disseminar boas práticas entre os países para que o mercado, ainda relativamente jovem, cresça de forma saudável e racional. Uruguai foi escolhido para presidir o grupo, com o Brasil na vice-presidência. Enquanto alguns países historicamente menos expressivos na produção artesanal, como por exemplo El Salvador e Nicarágua, integraram o bloco, a Venezuela acabou ficando de fora. São pequenos prejuízos como este, que somados estão fazendo com que o país siga atrasado em relação ao mercado local e global.

Qualidade venezuelana reconhecida no mundo

Diversas cervejarias venezuelanas já foram reconhecidas em competições internacionais. A Norte del Sur possui diversas medalhas em competições norte-americanas, a Cacri ganhou um ouro na Commonwealth de Kentucky, a Mito ganhou um ouro em 2013 no Mexico, Coronarias um bronze na Copa Cervezas de America no Chile. Andres Moix, da La Esquina ganhou recentemente um ouro na copa de homebrewers no Equador. A Pisse des Gottes já soma 14 medalhas, entre bronzes, pratas e ouros, nas copas Alltech Dublin e Kentucky, na Copa Cervezas de América, e na Copa lationamericana no Perú.

Apenas dois juízes certificados pelo BJCP permaneceram no país, Guillermo, da Pisse des Gottes, e Alexander, da Norte del Sur. Eles seguem realizando pequenas competições para fomentar o crescimento da cultura homebrew. Os irmãos Alfredo e Paul Sandoval, pioneiros do movimento e fundadores da extinta Pilger, foram os primeiros venezuelanos a certificarem-se como juizes pelo BJCP, mas deixaram o país para viver no Uruguai. Ambos trabalham atualmente em cervejarias expressivas na capital Montevideo.

Luz no fim do túnel

No ano passado começou a valer um decreto presidencial, com duração até dezembro de 2019, exonerando bens de capitais, incluindo os usados na indústria cervejeira, de pagamentos de impostos que giram em torno de 25%, o que beneficia e estimula a instalação de novas fábricas. Este é o caso da Norte del Sur, que está em fase de expansão, tendo adquirido equipamentos eslovacos que garantirão a capacidade produtiva de 180.000 litros anuais até o final de 2019. Resta saber se outros decretos ou leis surgirão para fazer com que essas fábricas sejam capazes de se sustentar posteriormente a longo prazo.

A crítica de gastronomia e observadora do mercado cervejeiro local, Rosanna Di Turo, acredita no potencial que os pioneiros do movimento artesanal, como a Tovar, Norte del Sur, Mito e Yaracuy ainda possuem, e aposta no crescimento destes e na ampliação da oferta de estilos que imprimam características nacionais à bebida. Afinal, foram estes os poucos que resistiram às conjunturas econômicas atuais e mantiveram seus negócios ativos.

Resistência como compromisso

As cervejarias artesanais na Venezuela ainda sobrevivem graças a uma pequeníssima elite capaz de pagar pela bebida. As que seguem ativas atualmente se beneficiaram da baixa quantidade na oferta de marcas, que tem feito com que eles sejam muito mais demandados que antes. A elevação do país como uma potência de nível internacional no setor, segue sendo apenas um sonho para aqueles que desejam um dia fazer a revolução cervejeira voltar aos trilhos na Venezuela.

“Temos pessoas comendo do lixo na rua, não é o melhor momento para muitas pessoas se sentarem e dizerem: “Ei, vamos fazer a diferença entre porter e stout”. Nós sobrevivemos para estarmos aqui quando as coisas melhorarem. É a nossa esperança. Não podemos parar agora quando a cultura e trabalho são necessários. Faz parte do nosso compromisso.” Guillermo

A nobre resistência que Guillermo defende, é compartilhada por muita gente. Além de microcervejeiros, outros empreendimentos gastronômicos seguem com propostas inovadoras, tentando fortalecer a cultura e economia locais. A maioria concorda que há de resistir e ter esperança de um futuro melhor. Somente assim, quando o país sair da crise e voltar a crescer economicamente, eles poderão recuperar o tempo perdido e alçar novos voôs. Qualidade e gente bem preparada, o país já mostrou que tem de sobra, basta apenas aguardar pelos próximos capítulos da política para ver como a Revolução cervejeira craft na Venezuela vai caminhar daqui pra frente.

*Esta matéria foi postada originalmente em inglês no site americano Sommbeer. Traduzida para o português pelo próprio autor. Link para a matéria em inglês aqui.

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