A trajetória da Ocupação Povo Sem Medo de São Bernardo

Laio Rocha
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6 min readDec 28, 2017
Foto: Mídia NINJA

Com mais de 40 dias, acampamento agrupa 7 mil famílias sob ameaça de despejo

Fazia 14º na madrugada do dia 2 de setembro de 2017, quando um grupo de 300 pessoas do MTST entrou no terreno de 6 mil m², localizado na cidade de São Bernardo do Campo/SP. Em pouco mais de 30 minutos barracas com lonas e paus se levantaram, sob olhares assustados da vizinhança.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto alega que o terreno não cumpre função social a cerca de 40 anos, e a empresa MZM possui uma dívida avaliada em mais de 500 mil reais de IPTU para prefeitura de São Bernardo do Campo.

Em pouco tempo a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana estavam no local. Apesar disso, não havia mais o que fazer. A ocupação estava consolidada, ou seja, totalmente assentada, e para agir nesse caso é necessário pedido de reintegração de posse pela dona do terreno.

No mesmo dia, a MZM Incorporação, entrou com pedido de reintegração de posse, concedido pela justiça, e que determinou a saída voluntária do local até as 18h, de acordo com o Diário do Grande ABC. Mesmo assim, no dia seguinte já se contavam 300 barracos e mais de 1 mil novos integrantes.

Negociação e reintegração de posse

A primeira tentativa de diálogo entre o MTST e a Prefeitura de São Bernardo aconteceu no dia 6 de setembro, quando integrantes do Movimento se encontraram com o Secretário de Habitação, João Abutaker Neto. No entanto, o governo decidiu não negociar, afirmando que a cidade possui programas habitacionais para atender a população.

No mesmo dia, o prefeito de São Bernardo do Campo, Orlando Morando (PSDB), falou sobre o assunto em sua página no Facebook. “Infelizmente nossa cidade foi vítima de uma invasão no último sábado. Aquela área é particular, então a prefeitura não pode tomar medidas judiciais, mas nós notificamos o proprietário prontamente”, afirmou, reforçando: “Mais uma vez nós ficamos a disposição da justiça para tudo aquilo que a administração puder e legalmente dever para cumprir o mandato judicial de reintegração de posse”.

A primeira grande assembleia da ocupação aconteceu no dia 9 de setembro, e contou com a presença de 6 mil pessoas, 20 vezes superior ao número de ocupantes inicial. Dessa forma, o cenário do terreno abandonado há cerca de 40 anos mudou radicalmente.

“Nós não vamos sair daqui sem uma garantia. Já entramos com recurso, pois sabemos que o terreno não cumpre função social e é o nosso direito”, afirmou Boulos.

Crescimento da ocupação e vizinhos

O crescimento exponencial da ocupação chama atenção, e é justificada pelo déficit habitacional da região do Grande ABC, que compreende as cidades de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano, Mauá, Rio Grande da Serra e Ribeirão Pires. São cerca de 230 mil pessoas sem moradia, segundo relatório do Comitê Intermunicipal do ABC.

“Sei do desconforto e da preocupação de todos que moram no entorno e de todos os moradores de São Bernardo do Campo. Nós temos uma política de habitação no município em andamento. Temos uma fila de pessoas que aguardam as suas moradias, e nós vamos seguir essa lista. Não é invadindo áreas públicas ou privadas que vamos construir uma cidade melhor e dar habitação para quem precisa”, afirmou o prefeito de SBC, Orlando Morando, no dia 13 de setembro, em seu segundo vídeo oficial sobre o assunto.

Morando ainda pontuou: “Quero reafirmar: o que depender da prefeitura, vamos dar todo o suporte seja cumprida e a paz, principalmente para quem mora naquele entorno, seja restabelecida”.

A preocupação com a população do entorno, grande maioria residente de prédios de alto padrão, tornou-se peça central da atuação da prefeitura. Isso porque os moradores se organizaram e criaram o Movimento Contra Invasão (MCI) no Facebook e que, em pouco tempo, conseguiu cerca de 3 mil likes, e mobilizou algumas centenas de pessoas em uma manifestação de rua, no dia 16 de setembro.

Na mesma data, um ataque contra a ocupação deixou um homem baleado. Aldinei Serapião da Silva, 40 anos, teve que passar por uma cirurgia para retirada do chumbinho, e registrou a ocorrência no 3º Distrito Policial como lesão corporal.

Em resposta, no dia 17 de setembro mais uma assembleia do MTST, dessa vez com 15 mil pessoas, e que levou ao palco diversos apoiadores e denunciou os ataques.

“Tem gente aqui em São Bernardo falando absurdos da nossa ocupação, a começar pelo prefeito. Quando age dessa maneira, a mensagem que ele passa é muito ruim. Gente de um dos prédios desses condomínios ao lado atirou com arma de fogo, numa atitude criminosa e fascista, de desrespeito à luta do povo”, disparou Guilherme Boulos durante o ato.

Em pouco tempo, a ocupação com mais de 7 mil famílias tornou-se conhecida no país, e, para a vereadora por São Paulo, Sâmia Bonfim (PSOL), um pólo de resistência na luta por habitação.

“A vitória da Ocupação Povo Sem Medo é atualmente o principal pólo de resistência política no país. Sua vitória é fundamental para todos os trabalhadores. Por isso é importante toda nossa solidariedade: moções de apoio, visitas, menções e doações de alimentos, água e roupas para os ocupantes. Enquanto morar for um privilégio, ocupar é nosso dever”, avaliou Sâmia em sua coluna.

Julgamento obriga diálogo

A luta contra a reintegração de posse da ocupação foi adotada por artistas como Caetano Veloso, Letícia Sabatella, Jefferson Santana, da página Dilma Bolada, entre outros. Além disso, a ocupação também recebeu a visita do escritor e ativista indiano Tariq Ali.

O julgamento para decidir em segunda instância a reintegração de posse do terreno ficou marcada para o dia 2 de outubro, data em que uma grande mobilização estava prevista pelo movimento caso a justiça determinasse o despejo da população.

O resultado da judicialização foi de vitória parcial para o MTST. Por um lado, a justiça determinou a legalidade da reintegração e manteve a decisão, por outro definiu que representantes do Movimento, dos governo federal, estadual e municipal, e da MZM Incorporadora, terão que negociar uma solução pacífica para a desocupação. A mediação deve ser realizada pelo Gaorp (Grupo de Apoio às Ordens de Reintegração de Posse) do Tribunal de Justiça de São Paulo.

“A decisão mais sensata era cancelar a reintegração de posse. Mas, pelo menos, não prevaleceu uma decisão inconsequente de jogar imediatamente na rua essas famílias. Até que essa reunião ocorra, vamos pressionar em várias frentes, com intensas mobilizações para garantir que o resultado dessa negociação seja efetivo para as famílias”, comentou Guilherme Boulos para o Brasil Atual.

Em nota, o Movimento disse: “reafirmamos que qualquer tentativa de desocupação sem solução habitacional não será aceita e encontrará resistência. A luta segue!”.

“Não somos favorável a esse tipo de movimento em prol de moradia. (…) Vamos aguardar a manifestação do Gaorp, buscando não ter nenhum conflito, preservando a integridade física das pessoas que ocupam o terreno, mas também a ordem social de todo o entorno, e da cidade de São Bernardo”, disse em vídeo o prefeito Orlando Morando.

Em resposta ao pronunciamento de Morando, Boulos afirmou que o prefeito faz uma série de confusões em sua fala. “Gente como o próprio prefeito apostou totalmente no conflito, e queriam uma operação de guerra, para fazer um verdadeiro massacre e reeditar o que foi o Pinheirinho”, disse. “A decisão, apesar de não nos agradar, também não legitimou essa turma do conflito e do massacre”, explicou o coordenador do MTST.

A MZM Incorporadora se manifestou através da ‘Coluna do Fraga’, no R7, dizendo em nota: “Esclarecemos que o terreno é de propriedade da MZM desde 2008, existem projetos em tramitação na Prefeitura para esta área, e não há pendências de impostos, e sim um pedido de revisão sobre o valor lançado do imposto de 2017, em andamento na Prefeitura através de recurso administrativo”.

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