“Narrativas brancas, mortes negras”: Movimento Negro lança análise da cobertura da Folha

Laio Rocha
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6 min readNov 25, 2017
Foto: Vinicius Martins e Solon Neto / Alma Preta

Pesquisa avaliou 1 mês de reportagens do jornal e destacou o sensacionalismo e a omissão do racismo estrutural presente na cobertura da “crise penitenciária”, em janeiro/2017

“Narrativas brancas, mortes negras” é o nome da pesquisa lançada na última sexta-feira, 16, em São Paulo, que analisa a cobertura do jornal Folha de S.Paulo durante a chamada “Crise Penitenciária” — série de rebeliões e confrontos em presídios de Natal/RN, Manaus/AM e Roraima/RR, que fizeram 129 vítimas e colocaram o sistema penitenciário na primeira página do noticiário.

A pesquisa foi realizada pela INNPD (Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas), CELACC-USP (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação), Ponte Jornalismo e Alma Preta, com orientação do professor da ECA-USP, Dennis de Oliveira.

Participaram do lançamento Pedro Borges, do Alma Preta, Junião, da Ponte Jornalismo, o orientador Denis, que também pertence ao coletivo antirracista Quilombação, Neill Franklin, do Law Enforcement Action Partnership, e Andrea James, fundadora e diretora executiva do National Council for Incarcerated and Formerly Incarcerated Womem and Girls.

O seminário integra a Conferência Internacional “Fronteiras Raciais do Genocídio: Brasil, 130 anos da abolição inconclusa reatualizada na Guerra às Drogas”, coordenada também pelo INNPD.

A mídia não consegue enxergar o racismo estrutural

Foto: Vinicius Martins e Solon Neto / Alma Preta

A pesquisa mapeou todas as reportagens sobre a “Crise Penitenciária”, como foi denominada pelo jornal, entre os dias 2 e 31 de janeiro. No total, o grupo analisou 155 matérias, sendo 58 de Manaus/AM, 36 de Roraima/RR e 61 de Natal/RN.

A escolha do jornal, de acordo com Oliveira, se baseia na influência e “impacto muito forte nos operadores da política nacional”. Além disso, ele coloca o periódico no tripé formador da opinião pública no Brasil, junto à rede Globo e a revista Veja.

“Quando se trata de segurança pública, isso gera incômodos no tipo de leitor da Folha, que é de classe A. Esse incômodo obriga o jornal e o jornalista a cobrir de determinada perspectiva ideológica, e isso pressiona setores e gera impacto na política nacional”, explica o orientador.

Os pesquisadores avaliaram as reportagens a partir de dois eixos: das palavras e das fontes. As palavras foram divididas em cinco grupos: estado, sociedade civil, crime organizado e ações. As fontes foram divididas em cinco grupos: Oficiais (Estado), Oficiosas (integrantes do governo), não oficiais (detentos ou familiares) e disruptivas (rompem pensamento hegemônico: movimentos sociais, pastoral carcerária e pesquisadores).

Com isso, o grupo chegou aos seguintes resultados:

- 70% das fontes utilizadas pelo FSP são oficiais (estado).

- A cada 100 fontes ouvidas pelo FSP, apenas 4 são disruptivas.

- Somadas, as palavras “barbárie” e “decapitação” apareceram 236 vezes, enquanto “privatização” e “superlotação” foram usadas 27 vezes.

- A palavra “negro” foi utilizada somente 1 vez.

- O termo “detentos” foi citado 806 vezes, mas apenas 11 vezes por fontes ligadas à eles.

“A narrativa que se constrói é que o problema trata-se de uma barbárie, que essas pessoas não são humanas, são animais. No entanto, não traz elementos que são importantes para o entendimento como a guerra às drogas e a privatização dos presídios, que pouco ou não apareceram na cobertura”, comentou o jornalista Pedro Borges.

Para ele, de forma geral, a imprensa “inverte racismo por preconceito e discriminação racial”, e não fala sobre o racismo no sistema carcerário. “A super representação da população negra no sistema carcerário evidência isso, principalmente nesses estados, em que mais de 75% dos presos são negros”.

“À medida que a Folha não racializa essa discussão, ela pouco colabora com a superação do racismo no Brasil”, pontua Borges.

Além disso, o jornalista chamou atenção para a super representação das fontes oficiais nas reportagens. “O jornalismo serve para avaliar a gestão pública. Se o poder público é o que mais fala, a possibilidade de você analisar esse trabalho fica contraditória. Essa prática chama-se oficialismo, que é uma ferramenta utilizada pelos veículos para trazer a opinião do estado como o único discurso”, completa.

“Quando você privilegia fontes oficiais em detrimento de fontes dos movimentos sociais, por exemplo, isso contribui para definir uma certa visão ideológica”, pontuou o professor Dennis.

Como travar uma disputa com a narrativa dos veículos hegemônicos?

Foto: Vinicius Martins e Solon Neto / Alma Preta

Fundadora e Diretora Executiva do National Council for Incarcerated and Formerly Incarcerated Women and Girls, Andrea James, diz que somente expondo as violências sofridas pelas mulheres no cárcere o seu movimento teve conquistas nos EUA.

Ela destacou que a terminologia utilizada pelos grandes veículos de comunicação para definir a população encarcerada, como “detentos”, “ex-detentos” e “condenados”, por exemplo, fixam estereótipos nessas pessoas.

“Eu estive encarcerada, mas isso foi apenas uma parte da minha vida. Eu sou mãe, esposa, e membro da minha comunidade, isso quer dizer, existem muitas facetas da minha vida, e não vou permitir que isso seja o resumo dela”, protestou James.

“Uma mulher encarcerada, mesmo no parto, foi mantida algemada, e a sua maior tristeza foi ver que a primeira pessoa que pegou sua filha no colo era um guarda branco e armado, enquanto ela não podia tocá-la”, conta a ativista.

As vitórias do seu movimento foram conquistadas a partir de relatos como esses. “Nós começamos a falar sobre isso, sobre essas situações extremamente constrangedoras, e é isso que está fazendo as coisas virarem. Nós estamos usando a nossa voz para mudar as coisas”.

Mídias independentes na contra narrativa e formação de agenda política

Foto: Vinicius Martins e Solon Neto / Alma Preta

As mídias independentes possuem um papel fundamental nesse processo, uma vez que criam narrativas a partir de outras fontes, aquelas que são as principais impactadas pelos eventos. É o caso da Ponte Jornalismo, que existe há 3 anos e trabalha pautas voltadas para direitos humanos de uma perspectiva territorial.

“A questão é de como olhar a noticia. Participar dessa pesquisa também é uma maneira de justificar o porquê da Ponte existir hoje, para disputar a narrativa e colocar a nossa visão de como as coisas acontecem”, explica Junião, e completa: “A grande imprensa tem dificuldade de enxergar o racismo estrutural”.

Neill Franklin, do Law Enforcement Action Partnership, foi policial durante 34 anos na cidade de Maryland, nos EUA. O seu trabalho, nesse período, esteve praticamente focado em deter pessoas em posse de drogas. Ele chegou a liderar quatro equipes simultaneamente, prendendo “centenas ou milhares de pessoas”.

“As imagens mostradas nos jornais são extremamente degradantes e criam a narrativa de que, pessoas que usam e vendem drogas são criminosas. Mas elas não são, e quem está falando isso é uma pessoa que prendeu pessoas por mais de 3 décadas”, diz Franklin.

“Se eu soubesse que essa Guerra estava focada em prender pessoas por sua classe social e cor, eu jamais teria feito parte disso”, conta o ex-policial.

“Nós temos que contar as histórias dessas pessoas que foram e estão encarceradas, temos que educar os policiais, trazê-los para nossa rede, para que entendam que essa política só os prejudica, assim com os pardos e pretos pobres”, reitera Neill.

“A mídia te leva ao raciocínio, a partir de uma construção muito sutil, que as rebeliões acontecem em função da superlotação, e que o estado não tem capacidade para dar conta das vagas. Essa noção leva ao raciocínio de que a privatização é uma solução”, opina Dennis de Oliveira. “Temas como o abolicionismo penal não são levados em conta nesse debate”.

“Mais do que disputar a narrativa, é essencial que disputemos a agenda política, e isso só vai acontecer se conseguirmos unir forças e se mobilizar”, pontuou Oliveira.

Confira o vídeo completo do seminário:

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