Arte também é cria

Qual é o lugar da mãe artista num mundo pandêmico?

Coletivo Lança
Lançatxt
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5 min readMay 31, 2021

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Sou Letícia Lopes, 40 anos, estudante de pedagogia, guitarrista, compositora, editora em portal de música, administradora e produtora cultural, mãe de 3. A pergunta que eu mais ouço: como você dá conta de tudo isso? Resposta: eu não dou. E tudo bem.

Na foto, da esquerda para a direita: Elena, Pablo e Letícia.

Enquanto escrevo esse texto, divido minha produtividade com Elena (5 anos), Pablo (13) e Nicolas (16). Elena entra e sai do quarto, pede atenção à maquiagem que ela encontrou em algum canto do meu armário, pede vestido, troca roupa, “mãe, olha minha dança”, “você sabe pular corda?”, respondo sem olhar, “uhum”, “então eu quero ver se você sabe mesmo”, “aprendi a cruzar as pernas”. E as interferências não terminam aí. Pablo está com fome, quer lanche, chama pra ver a chuva da janela, “parece ciclone”, diz ele com um medo não declarado. “Mãe, caiu a internet, liga pra Net”. Nicolas passa pelo computador e finge que vai apagar tudo o que eu redigi, porque ele jura que não quer atenção, só quer fazer uma brincadeira boba pois está entediado. É mãe pra tudo e, por muitas vezes, pra nada também. A casa está sempre cheia, barulhenta, bagunçada. E quase não dá pra fazer arte, faltam momentos para pensar em nada além dos meus pedais, minha guitarra, meu programa de edição que faz tempo que não me vê.

Eu sei que não estou passando por isso sozinha, é a realidade de muitas. Pensando nisso, preparamos um formulário que foi disparado algumas semanas atrás, perguntando para outras maternas como elas têm passado por esse período de pandemia, em que pé estavam seus processos criativos. Numa tentativa de mapear, conhecer outras artistas mães, saber mais sobre suas vivências e pensar em formas de nos aproximar.

Uma das perguntas que mais mexeram comigo ao ter acesso às respostas foi sobre como tem sido maternar durante a pandemia. Independentemente do número de crianças, de terem ou não apoio familiar, o que pudemos perceber até agora é que, maternar durante a pandemia é “um horror, dia da marmota infinito”, conforme respondeu uma das entrevistadas. E esse sentimento tem sido recorrente entre as considerações no formulário. Mais do que gostaríamos de ler e saber.

Na foto, da esquerda para direita: Pablo, Nicolas, Elena, Felipe e Letícia.

Mas o que não é novidade pra ninguém é que a pandemia evidenciou de forma assustadora as desigualdades do país, ampliou as diferenças sociais, e nessa perspectiva, ao menor sinal de crise, as mulheres estarão na linha de frente do grupo de pessoas que vão sentir de cara as consequências, e essa projeção tende a piorar quando realizamos um recorte de raça, classe, gênero e orientação sexual.

Durante a pandemia, muito se falou da sobrecarga materna nos jornais, estudos mostrando o que a gente já sabia faz tempo. Nós trabalhamos 24 horas por dia, dividindo as horas em frações anormais que só nossos relógios dão conta de fazer o cálculo. A gente acorda, dorme, o dia atropela nossa rotina como flecha, bem diante dos nossos olhos incrédulos e parece que março de 2020 foi semana passada. Um caos difícil de se ajustar, nem porque sou taurina e não lido bem com mudanças drásticas, mas porque, antes do vírus, estávamos no limite e achávamos que não dava pra piorar, mas piorou.

Mesmo estando imersas no ciclo das dificuldades, de desgaste físico e emocional, não faltaram relatos de resistência e força sobrenaturais para transformar essa realidade pandêmica, em momentos de reflexão e tentativas de manter florescendo ideias, sonhos. Vamos organizando nossos horários, deixando as crias fazerem parte do processo de criação, adaptando espaços. O que não nos permitimos é deixar morrer nossa arte, o que nascemos para fazer mesmo que o mundo todo conspire para que a gente desista. Porque mãe tem um lugar. O lugar do cuidado exclusivo do outro, em casa, trancada, trabalhando para que os sonhos do outro se realizem, eles disseram. Mas a gente é braba, e chega com o pé na porta, teima, resiste. Vamos construindo espaços que ninguém quer construir pra gente. Desbravando novos caminhos e reverenciando todos os outros das que vieram antes de nós.

Uma última consideração, e a mais importante, é o quanto uma rede de apoio faz toda diferença quando analisamos as respostas sobre motivação para continuar. Depois das crias, ter com quem contar é um dos principais responsáveis para que mães não desistam de seguir produzindo. Compartilhando as tarefas, os medos e a carga emocional de criar e educar crianças durante o isolamento social.

Portanto, não poderia finalizar esse texto sem antes lançar aqui uma provocação. Você, que está lendo esse desaforo de texto, que traz tantos fatos obscenamente óbvios, faz parte da rede de apoio de alguma materna artista?

Sobre a autora:

Letícia Lopes (RJ) é materna, musicista, produtora cultural e editora de conteúdo. É pedagoga em formação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, além de militante pela visibilidade da produção artística e cultural das mulheres. Guitarrista e vocalista na Trash no Star, banda fluminense de rock. Na Errática, também no Rio de Janeiro, atua como baterista e guitarrista. Em 2015, fundou o selo Efusiva Records ao lado de três sócias. O trabalho da Efusiva, reconhecido nacionalmente, nasceu com o propósito de desenvolver e promover o trabalho artístico e musical feito por mulheres. Já em 2016, se tornou uma das fundadoras da Motim, uma casa de cultura localizada no bairro de Visa Isabel, no Rio de Janeiro. Atua na gestão administrativa do espaço, curadoria e produção de eventos. Desde 2019, é editora-chefe do Nada Pop. Além da curadoria, atua na redação e nas redes sociais do portal.

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