Desabafão, amores e apocalipse zumbi

Coletivo Lança
Lançatxt
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4 min readApr 2, 2022
Colagem Figueira Infinita

Seu Zé me disse uma vez que apesar de a gente comumente falar que ele era morto ele tava mais vivo que muita gente por aí e isso me deixou pensativa sobre um bocado de coisa.

Uma delas que eu mesma já andei morta por aí, que até eu levantar e abrir meus grandes olhos, se eu vivia a vida dos outros e não a minha própria isso já era uma espécie de experiência de morto-vivo fudida. Acho que isso pode ter muitas interpretações, mas fiquei pensando: vivemos sobre uma política de morte. o que funda e consolida esse estado-nação nas terras de pindorama é uma política de morte secular. a máquina capital mantém suas engrenagens funcionando a partir da morte, de todos os povos não-ocidentais, de toda a natureza, de todos os encantos, de todos os espíritos… (não que essa morte seja totalmente efetiva, estão todas as resistências em todos os cantos por aí com seu suor sagrado, mais antigas que a primeira arma de fogo, mais ardentes e luminosas do que a primeira fogueira acesa pela inquisição.)

Fiquei pensando que estar confortado com o funcionamento dessa maquinaria toda, com toda essa política de morte, é de alguma forma também estar morto. até entendo que pode ser difícil acordar, às vezes parece que não sobra tempo, tem lógico todo um esquema armado pra não se enxergar, não ouvir seus antepassados e a memória da terra, é perigoso, a inquisição se mantém à todo vapor, tão versátil e dinâmica dançando uma valsa com a globalização… mas também sei lá, sempre dá jeito.

Tá, tem um cenário de guerra aí. Tem temas de grande porte a serem tratados, florestas devastadas, fome generalizada, genocídio. fiquei pensando se eu não to sendo mesquinha por levar o texto pra onde eu vou levar agora, mas em grande parte eu sou também uma puta triste e amargurada então lá vou eu, me dou esse direito.

Pros desavisados eu sou uma travesti. e isso é um ponto crucial, pra essa grande máquina mortífera funcionar pressupõe-se a nossa morte, sangue de muitas como eu foram utilizados pra lubrificar essas engrenagens. e tem ainda um esforço muito muito grande pra fazer crer que isso é desimportante e secundário, mas se fosse mesmo então pra que tanto esforço?

Bom, vamos lá, eu tô querendo falar sobre amor e afeto. duas coisinhas que me são negadas e que diariamente sou lembrada disso pra reforçar.

Esses dias tava sentada na mesa com Dona Rosa e Dona Sete, falei que eu tava fudida de recursos que eu precisava de um emprego pra pagar minhas contas, pra fazer a feira, não tá tendo, e que eu queria me divertir também poxa, queria curtir um love com um boyzinho bacana também (não precisava ser um só, mas porra já tá tão díficil…) eu me sinto meio boba falando desssas coisas pra mulheres que correm todos os cantos do universo, que tem agua correndo na barra da saia nascendo flor, mas enfim, acho que só por isso elas me entendem também. Eu tava num papo meio sórdido, meio fazendo a xuxa naquela entrevista “nesse país não há homem pra mim”, meio desacreditada, sabe? O mercado não tá pronto pro que eu sou e pro que eu faço, nem os homens também. Elas ficaram meio nervosas com a minha falta de fé. Dona Rosa jogou assim “então você vai fazer isso mais uma vez, vai falar ah as coisas são assim e pronto, seguir seu caminho triste…” e eu numa de “tá difícil de acreditar nessa grande oportunidade, nessa prosperidade, tá díficil acreditar nesse homem, eu nunca nunca vi…”.

Aí eu fiquei pensando que eu acredito muito em Dona Rosa, e também nunca a vi. E porra, talvez ela esteja mais viva do que qualquer homem com quem eu já tenha fudido. putz isso é puta triste. Acho que todos os homens que já transei estavam mortos. Que jornada minha filha! A caça-vampiros, a amante de zumbis. Se pá toda essa amargura é por ter me infectado do vírus deles, que vinham sedentos pela minha fonte de vida, esse tipo de morto mata tudo à sua volta. Eu um pouco ingênua, um pouco malina, só queria uma dose de uma ilusão romântica de contato. É, tem que ter muita ginga pra não morrer com o copo de veneno, a gente aprende a duras penas.

Mas que loucura, se cada tipinho de zumbi que já peguei, do mais fofinho ao mais escroto, se cada um deles perde o disfarce ia rolar uma grande explosão na máquina. Penso neles enquanto descasco a cebola, camada por camada. Pois são eles que na luz do dia interpretam seus papéis fajutos no grande teatro da grande máquina. São os estandartes da família tradicional. Tradição de silenciamento, de abuso velado, os ossos embaixo da mesa no comercial na televisão, emocionante. Mas agora eu tô muito puta e acho que Dona Rosa ficaria orgulhosa, por mim vão todos se engasgar na própria margarina.

Eu tenho que parar com esse vício. Tenho que resolver o que faço com essa falta, esse grande buraco no meu peito, esse desejo de ser amada. Vou resolvendo isso enquanto atravesso essa cidade, esse cenário hollywoodiano de apocalipse, com minha faquinha, meu espelho, na missão de encontrar e me reunir com as vivas. Que merda fizeram com essa terra. Meu sonho é bem maior que a grande máquina e eu tô atrás de uma grande festa e preciso de muita vida pra isso. Grande jornada, minha filha, vambora! Me olho de fora, me abraço, sua intuição te fez infinita. As águas sempre encontram meios de passar. Essa festa é uma enchente, graças a Deize! Esses prédios vão ruir, graças a Deize! Tô aqui seu Zé, Dona Rosa, tô aqui minhas velhas travestis seculares, tô viva, cheia de fúria, cheia de amor e, especialmente hoje, cheia de fé.

Iêda Figueiró.

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