Melanicidade — Como pertencer ao que nos foi roubado?

Coletivo Lança
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5 min readAug 22, 2021

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Por Felipe Santos

Em 07 de Abril de 2021, eu, aos 41 anos, motivado pelo aniversário de 97 anos da resposta histórica, (carta escrita pela direção do Vasco da Gama que se posicionava sobre ter em seu elenco jogadores negros e de origem humilde e que talvez tenha sido um dos primeiros documentos antirracistas do futebol
brasileiro), me pergunto sobre o lugar que nós negros ocupamos nos diversos setores e saberes deste planeta que, apesar da onda retrô medieval, insiste em continuar girando em torno de sua órbita.

Camisas Negras: Vasco campeão carioca em 1923. | Fonte: Arquivo Clube de Regatas Vasco da Gama

Dentre esses saberes, os lugares que sempre me deram conforto e direção além do futebol (para aqueles que não sabem sou vascaíno, sim senhor!), foi a música. Por imensa sorte, sempre tive um lar cercado de vinis e uma família grande e comunicativa. Além disso, em 1991/1992, com a MTV canal 24 UHF, pode-se determinar meu marco zero dessa jornada de amante da música.

Dessa época, três clipes de bandas que me fisgaram: R.E.M, Soundgarden e Sepultura. Três anos depois, Sonic Youth, Pavement, Mudhoney e Nirvana me fizeram mergulhar totalmente nesse universo de guitarras distorcidas e dissonantes. E novamente depois de três anos, a turma do segundo grau (atual ensino médio) me dava a liberdade de formar bandas e ir a shows.

Todas essas, e inúmeras outras bandas continuam a ser referências estéticas, musicais e comportamentais, mas continua a me intrigar um problema que está de longe de ser resolvido: Aonde está o povo preto no rock? Somente nesses últimos anos que me senti a vontade para escrever, ou discutir sobre o assunto.

Fazendo um breve retrospecto das figuras que tinha como referência, nenhuma delas era preta. Como explicar essa lacuna? Por acaso não foram Sister Rossetta, Ettha James, Nina Simone, John Coltrane, Fella Kutti, Candeia, Pixinguinha, Clementina de Jesus os verdadeiros pilares de uma revolução musical e cultural contemporânea que daria possibilidades de existência ao rock And Roll como conhecemos hoje?

Sister Rosetta Tharpe — Fonte: Autor(a)Desconhecido(a)

Parece que faltava um espelho e um olhar apurado para entender que o rock em sua essência é preto. Nasceu do blues e do jazz estadunidenses e no Brasil é primo do samba. Durante minha adolescência, transitei praticamente entre dois grupos de ouvintes de rock: headbangers e punks. Sempre gostei de trash metal mas a fala pseudo consciente de alguns desse núcleo sempre escondeu um certo grau de sexismo e misoginia.

No punk me encontrei politicamente, mas ainda sem a incidência mais aguda de temáticas como negritude e feminismo. Além de rock, eu também ouvia
reggae e rap. Comecei a perceber que politicamente, os dois últimos faziam bem mais diferença para a formação de uma identidade para o povo preto.
Tempos depois o funk carioca surge como a última peça nesse caleidoscópio musical e cultural urbano que estamos inseridos no momento. Mas a pergunta insiste: por que não estamos em número considerável na plateia e tão pouco nos palcos?

A vontade de fazer rock sempre esteve presente, desde os 11 anos, mas começar a tocar algum instrumento somente aos 17 anos, quando ganhei de presente uma guitarra que vinha com um amplificador junto — era quase com um brinquedo — o nome do amp era Brabu’s. Também ganhei um pedal de distorção que se você pisasse quase quebrava o botão — não era um pedal, era um dedal.

Eu era um jovem preto no início da caminhada em direção ao noise. Sempre tive as mínimas condições materiais para o florescimento dessas potencialidades. Eu tinha um lar, carinho, estudo e não precisava trabalhar para me sustentar. Agora, parar pra pensar na realidade esmagadora da maioria da comunidade preta, do país…

Até uns 120 anos atrás ainda éramos tratados como objeto (não que isso tenha mudado hoje). Depois da nossa pseudolibertação fomos abandonados e marginalizados. Existe uma relação absurda entre possibilidade e capacidade que se apresenta como um divisor de águas nesse contexto. Quantas pessoas
pretas que preenchem todos esses requisitos para explorarem suas potencialidades e consolidar suas vidas e habilidades? Quantas mulheres pretas conseguem isso?

Voltando ao tema sobre as origens do rock e como me encontrei na música, chegamos a uma relação que pode responder a pergunta: cultura e propaganda. Desde a segunda metade do século XX, o rock foi vendido como identidade cultural da juventude. Esse processo teve seu ápice com o surgimento da MTV na década de 1980. Um canal dedicado exclusivamente a transmissão de clipes de música. E a MTV ditou regras estéticas, comportamentais e musicais para a cultura jovem de massa, neste ocidente
contemporâneo.

Vinheta clássica da extinta MTV

O glamour e as excentricidades de artistas podiam ser consumidas diariamente a um trocar de canal. Surge então a mitologia do rock star. Limusines, champanhe, estádios, nada que pareça com a realidade de Soweto, Kingston, Capão Redondo ou da Baixada Fluminense. Uma epopeia narrada, quase que exclusivamente por brancos, sobre suas habilidades sexuais e musicalizadas em guitarras como competição de datilografia.

Na época, eu me identificava como uma pessoa parda, e cortava o cabelo com máquina 3 e não conseguia me achar bonito. Por mais que eu estivesse usando aquela camisa xadrez com jeans rasgados ou aquela blusa do New York City Ghosts and Flowers (disco do Sonic Youth do ano de 2000). Desde a minha infância até o início da minha vida adulta eu detestava espelhos. Talvez porque não fosse gostar da imagem que eu ia ver. Na verdade, o tempo me fez enxergar que o racismo enraizado na sociedade brasileira te torna cego. Você desconhece suas origens e o processo reverso pode levar tempo e vai ser doloroso. Libertador mas doloroso.

Há vinte anos atrás, eu não tinha acesso a canais para discutir essas angústias. Estamos começando a virar o jogo (colocação futebolística inevitável). Hoje, ajusto meu foco e me vejo como homem preto, de cabelos crescidos e crespos, entregando a alma ao fazer minha música e comemorando duas vitórias: do meu time contra o adversário da noite no jogo de futebol e do combate ao inimigo de sempre, o racismo.

Sobre o Autor:

Felipe Santos, 41 anos, licenciado em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro — UFRRJ. Pai do Nicolas, Pablo e Elena, baixista, toca guitarra é vocalista e compositor na banda Trash No Star.

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