A Noite é escura…

Acompanhado na solidão.

Raphael Kepler
LAPSOS
Published in
4 min readMar 19, 2019

--

Eu sempre tive uma relação esquisita com a escuridão.

Por mais que eu adore locais com baixa iluminação, existe algo em mim que não consegue relaxar. Não é medo de assombração ou algo do tipo.

É apenas um desconforto latente, um calafrio tosco.

O que acontece nos cantos mal iluminados, onde nossa visão falha, e apenas interrogações surgem nos limites de nossa mente?

O que habita o fundo do corredor, onde o vazio é palpável?

Com tantos receios e preocupações sobre a escuridão, nem pareço o cético que sou. Porém seria desonesto de minha parte negar esse… essa angústia.

Por mais que eu fuja, logo me pego desejando o silêncio noturno, a falta de tudo ao redor, e o principal: a sensação de estar pairando sozinho pelo universo.

Sou um andarilho das trevas. Caminho pelas veias da noite, fingindo buscar a luz no fim do túnel, quando meu real desejo é que esse túnel seja eterno.

Eu persigo sombras, enquanto desvio de pesadelos, enrolando os fios de prata daqueles que dormem. E aqueles que dormem me parecem tolos. Tanto tempo descartado, tanto sereno desdenhado, tantos sonhos desmembrados.

Adoro a noite e detesto o dia. É nas madrugadas que minha mente aflora e o mundo parece pequeno demais para os meus desejos. É quando a lua surge lá em cima que eu me sinto bem.

Me sinto vivo.

E me sinto também atraído pelo desconforto de estar no escuro. Sempre foi assim, um paradoxo de sentimentos. Quase um magnetismo… na verdade é como um vício que se rasteja em meu olhar.

Quando eu era mais novo tinha o costume de caminhar de madrugada, e sinto muita falta disso. Adoro os aromas que a noite traz, os gatos revirando lixeiras, a brisa fria invadindo meus pulmões… adoro reparar nas casas com luzes acesas e perceber que existem outros que nem eu.

É como estar acompanhado na solidão.

Os pensamentos podem ser ensurdecedores durante a madrugada. E, se não tomar cuidado, posso confundir sonho com realidade, enquanto minha visão periférica alimenta meus piores anseios.

Ouço gritos calados entre os espelhos que me vigiam.

E me pego observando as janelas, aguardando alguma presença desconhecida. Há um medo de estar acordado tão tarde, mesmo que eu não tenha feito nada.

Uma culpa trágica, que quase esbarra na euforia de ter o mundo todo pra mim.

Eu já tentei seguir o padrão. Dormir de noite e acordar cedo. E, mesmo quando eu tinha que acordar 6h da manhã pra trabalhar, ficava acordado até às 2h, como se eu precisasse pelo menos passar um tempo com minha melhor amiga.

Eu nunca gostei de dormir, e nunca apreciei muito a rotina tradicional, e todas as suas mesmices.

Eu gosto da madrugada porque ela me soa libertina, livre e totalmente insensível aos meus dilemas.

Ela me ouve, mas não se importa.

Eu sempre fui melancólico e egoísta. Assim como a noite. Somos confidentes e rivais. Semelhantes em nossas diferenças.

Durante minha adolescência eu reservava a madrugada pra compor, escrever e criar meus universos particulares. Minha mãe ia dormir e eu ficava ali, sozinho com meus cadernos e ambições.

Eu sentia que podia dominar o mundo.

Então quando o dia chegava, tudo parecia ridículo. E meus cadernos pareciam infantis, minhas melodias soavam desafinadas e meus textos eram garranchos desconexos de alguém que eu não reconhecia.

Logo a manhã se tornou minha principal inimiga, e eu me via fugindo sempre de sua presença. A lua me seduzia, trazendo motivação e ambições, enquanto o sol incinerava tudo ao redor, franzindo meu rosto e me deixando cada vez mais insatisfeito com a realidade.

Demorei pra perceber que o dia não era capaz das coisas que eu imaginava. E percebi também que eu deveria apenas não ouvir o que ele tinha pra dizer. Passei a ignorar seus conselhos, e me agarrei aos ideais de minha amiga noite.

Então tudo passou a fazer sentido pra mim. O dia com sua claridade sempre foi o antagonista de minha vida. E a noite é a musa que me faz cavalgar por entre pântanos e montes rochosos, apenas pra apreciar novamente sua pele pálida.

A noite é traiçoeira e leal, gélida e morna. Ela te assusta e te conforta, e é isso que me atrai pois, por mais que isso soe muito estranho, há um ‘quê’ de “humano” nela.

Como é possível que minha mente reserve sentimentos à um momento do dia?

E pior: como é possível sentir que tudo isso é recíproco?

Talvez a ciência explique isso, mas quem liga pra ciência quando o assunto é transcendental?

Quem liga pra explicações quando o medo de dormir abraça o conforto de estar vivo?

Ou será que é o medo de estar vivo que abraça o conforto de dormir?

Último episódio do ANOMIA (Meu podcast):

Você pode assinar pelo Spotify, ou com o RSS Feed em qualquer app de podcast.

Onde mais estou:

Twitter | Instagram | Youtube | Podcast | Músicas

--

--