Besouros

No chão da cozinha

Raphael Kepler
LAPSOS
Published in
4 min readMar 14, 2019

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Eu gosto de mentir.

Esconder meu rosto entre as névoas.

É incrível ver o mundo ao redor bajulando o que não sou. Mas eu também sei ser sincero. Posso até dizer que amo. Posso voltar atrás e te abraçar, carregando punhal em minhas mangas.

Eu gosto de correr nu nas ruas e tropeçar em meio-fios.

Eu sempre tropeço em meio-fios.

Ela diz que eu sou estabanado, que vivo dentro de mim. Ela diz pra eu tomar cuidado, andar com calma, devagarinho. Mas eu não posso ir devagar, sorrir ao vento ou esperar pela brisa. O que eu preciso é correr, tropeçar até quebrar o dedo, me perder até me encontrar.

Eu gosto de matar inseto.

Espirrar inseticida até eles ficarem brancos de veneno. Os besouros são os que mais enchem o saco. Mas eu sempre venço. E me vanglorio ao vê-los se debatendo no chão da minha cozinha, afogados em suas mortes.

Eu esqueci de falar que sou cruel.

Mas não importa, você também é. E nem venha me dizer que não. Você tem crueldade aí dentro. Você também tem demônios de estimação. Até os anjos apreciam as chamas.

Eu reparei agora que falo muito de demônios e assombrações. As trevas são paisagens em meu mundo, e nada divino me faz bem. Eu sou egoísta, pervertido e teimoso. Minto por diversão e me escondo nas sombras.

Mas pelo menos reconheço as merdas na minha privada.

E você?

Todo bem vestido, cabelo com gel e dentes branquinhos. Eu tenho medo e nojo de você, com suas festas, bebidas doces, terno e gravata. É sua laia que fode o mundo, os “reis do camarote”, filho de político e ex BBB. Eu não preciso de sua simpatia. Você é um verme vestido de realeza.

Eu gosto de mentiras. O mundo é menos feio com elas.

Eu caminho entre as bolhas, e todas elas me deixam doente. Esse papo de

“paz e amor”,

poesia bonitinha,

cerveja cara,

cerveja barata,

ir de carro,

ir de ônibus,

carne assada,

veganismo,

burrice,

diploma,

fila de festa,

conversa em fila de festa,

camisa de banda,

camisa de time,

série nova,

filme de herói,

hit de verão,

música acadêmica,

fulano morreu,

novela das sete,

fulano matou,

novela das oito,

rede social,

vida real…

Eu prefiro café dormido e remela no olho.

Prefiro te ver sorrindo lá longe. Tão longe que nem vejo mais.

Prefiro caneta sem tinta e livro amassado.

E você sabe o quanto eu odeio livro amassado.

Você sabe como eu odeio dividir oxigênio com gente idiota. Mas eu vivo cercado por vocês, e tenho que sorrir, apertar mãos e atravessar na faixa. Sinal fechado, sinal aberto, barulho de avião e táxi sem ar condicionado. A cidade pode te deixar febril.

As formigas nas calçadas podem me enlouquecer.

Ela me diz que eu sou muito fechado, que eu não falo sobre meus sentimentos. É verdade. Mas também é verdade que não quero falar sobre eles, então por que deveria falar sobre eles?

Eu me fecho porque o mundo é idiota.

Eu me fecho porque não me importo com as opiniões.

Eu me fecho porque não tenho tempo pra frases no para-choque.

Falando em para-choque, eu não gosto de carros nas ruas também. Buzina gritando, sinal vermelho, gente velha na minha frente, estudantes no ônibus. Não gosto de bicicleta em calçada e nem de cachorro cagando em sacolas.

Eu gosto de pichação, orelhão quebrado e policial dormindo na viatura.

E eu gosto de mentir novamente, sorrir pra câmera e ceder meu lugar.

É difícil entrar no super-mercado, olhar os corredores imensos e não me perder na multidão. É difícil não bater com o carrinho no calcanhar das pessoas, comparar preços, piso molhado e caixa preferencial.

É difícil olhar em volta e não poder matar todo mundo.

Pois vocês são piores que besouros.

E seria divertido espirrar inseticida até você ficar branco de veneno.

Pois sua voz é o que mais me enche o saco. E eu sei que poderia vencer.

Eu poderia me vangloriar ao ver você se debatendo no chão de minha cozinha, afogado em sua morte.

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