Dia Sem Medo

Viajei de charrete, foguete e pé.

Raphael Kepler
LAPSOS
Published in
6 min readMar 13, 2019

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Teve um dia que eu não senti medo.

Eu andei pela rua sem olhar para os lados, e fingia não ouvir quando me chamavam. Até mesmo no ônibus eu não vi quem tava lá. Eu não sabia o nome do motorista, e não me importava com o cheiro do esgoto.

Eu tinha um grande plano: conhecer o mundo até o fim do dia.

E por isso eu corri. Eu fui até os montes mais altos e olhei ao redor, buscando meu ponto de partida. Eu pensei que poderia encontrar ajuda entre as matas, um ancião escondido numa caverna. Um urso que não me devorasse. Mas esse dia era só meu, e ninguém mais deveria se perder comigo.

Eu conheci cidades esquecidas e mergulhei em lagos envenenados.

Houve uma pequena vila que me recebeu com biscoitos e cerveja. Eu fiquei lá por um tempo. Apenas uns meses antes que meu dia terminasse. E lá eu conheci homens de olhos negros, crianças de orelhas pontudas, e mulheres de corpos longos.

Eu tive romances, fiz inimigos e e dormi em telhados. Eu era atração na taverna quase todas as noites, contando minhas histórias e fugindo dos tomates. Eu quase me tornei prefeito, e quase desisti do mundo de fora.

Dessa vila eu não lembro o nome, e não penso nela antes de ir deitar. Foi lá que eu descobri que o dia apenas termina quando suas ruas eu voltar a pisar. Foi lá que esqueci minha memória, e foi lá também que eu provei o doce som do amanhecer.

Era uma vila de água doce e noites longas. Uma vila que já nem sei.

Mas eu tinha que voltar pra cidade, e por isso corri entre as árvores e segui o riacho. Precisava aproveitar aquele dia sem medo, e o mundo ainda era grande demais. Eu precisava seguir o plano.

Fui pro norte, sul e praias. Viajei de charrete, foguete e pé.

Bebi vinhos com princesas e velejei com piratas. Meu dia estava sendo muito bom. Mas quando a maré subiu e as ondas dançaram ao redor de minha canoa, eu caí no oceano.

Água lenta de mar feroz, solidão na imensidão.

Então o mundo que eu queria conhecer ficou maior, e logo entrei em terras submersas. Brindei com sereias e demônios marinhos. Em pouco tempo conheci seres das trevas e da luz.

Vocês chamam todos eles de “peixes”. Ah, se vocês soubessem…

Eu fiz amizade com uma jovem poeta das profundezas. Ela me ensinou a ouvir os gritos e os fantasmas lá longe. Eu contei pra ela sobre meu plano de conhecer o mundo. Ela gargalhou, e disse que o mundo demora mais do que um dia.

Ela me levou numa viagem e me apresentou guerreiros e exércitos da antiguidade.

Eu fui um soldado no quase-sempre das águas negras. Essa minha nova amiga me fez abraçar aquela nova realidade, e logo eu tinha um nome a zelar naquele universo desconhecido.

Ela me disse que eu não poderia voltar para casa. Disse que tudo lá em cima havia explodido, e que as canções não eram mais cantadas. Mas eu me debati, xinguei e iniciei uma guerra.

Batalhei com reinos inimigos, e deixei minha marca de fogo em Atlântida. Eu fiz por merecer, e por isso conquistei impérios.

Mas não há castelos no fundo do mar, e eu me encontrei entediado. Ataquei cidades e destruí alianças milenares. Me tornei criminoso, caçado em todos os distritos, mergulhando cada vez mais em minha vaidade.

Minha amiga me falou que isso passaria em breve. Mas no fundo eu sabia que nada mudaria. O sol ainda brilhava em seu egoísmo, e as abelhas são mais perigosas por lá.

Eu não fiz amigos, mas sou o único culpado. Confisquei tesouros, me escondi em banheiros e troquei meu rosto.

Sempre soube usar máscaras.

Eu cresci em ego, e me corroí ao tentar atacar os abissais. Eu fui cercado por ácidos e águas venenosas. Eu gritei ao ser deformado, me afundei na lama negra. E eu vi peixes me encarando, passando longe de mim, assustados com minha nova pele.

Então me tornei no que sou, e decidi destruir aqueles que me deixaram morto em vida. Eu levei séculos até encontrar algo que me permitisse nadar até o fundo, até o lugar nenhum. E foi pra lá que eu fui, desviando das águas vivas e dos tubarões.

Ao passar pela barreira de algas negras, tudo que eu vestia foi corroído. Menos eu. Minha pele agora era outra. Então eu caí no piche eterno, sem forças pra gritar. Mas eu gritei. Olhei ao redor, e vi outros que flutuavam. Novos Abissais como eu. Seus olhos vazios, distantes, conformados com o fim.

E nós seguimos flutuando no piche por milênios. Eu não sabia onde minha amiga estava, e nunca mais fui monarca de reino algum. Mas um ser da noite nos encontrou e nos levou para seu povoado.

Eu fui escravo dos homens de piche, e aceitei minha morte. Aqueles eram seres estranhos. Eles roubavam cristais de outras cidades. Eram como piratas, mas tinham farda e patente. Não se misturavam com ninguém, e adoravam dar choques em escravos rebeldes. Sei disso porque mandei o comandante ir à merda inúmeras vezes.

Eu não sentia os choques ou dor alguma. O piche havia criado um escudo em meu corpo, e por isso eu sentia prazer em ver a cara de bunda que eles faziam quando eu não implorava pela vida.

Isso chamou a atenção de um dos generais, e ele me fez uma proposta. Ele me ofereceu um exército pessoal e um pequeno vilarejo. Tudo que eu tinha que fazer era matar o comandante. Ele era o segundo em poder, e só com o outro morto poderia cumprir tal promessa.

Com o exército concebido a mim, eu matei o comandante, mas não apenas ele. Dizimei todos os oficiais da cidade, e tomei o controle. Os outros escravos foram libertos, enviados para suas casas. E aqueles que quiseram ficar, me ajudaram a formar uma força incrível de soldados sem farda.

E assim nadamos para cima, sentindo a pressão do mundo sobre nós.

Encontrei minha amiga quando voltei para Atlântida. Ela estava mais velha, cabelos brancos e pele cansada. Ela não me reconheceu. Me olhava sem me ver, e parecia que ia chorar a qualquer instante. Estava doente. E mesmo se não estivesse, o piche havia me transformado em outro.

E foi quando eu lembrei do mundo lá em cima, e quase ouvi uma voz amarga me chamando pra casa.

Eu busquei um anzol arisco e me agarrei, fingindo ser um… peixe.

Mas peixe eu não era, e por isso o fio arrebentou. O medo tomou conta de mim, e percebi então onde eu estava.

Água lenta de mar feroz, solidão na imensidão.

Essa água entrou em meu corpo, levando a vida embora.

Mas, mesmo morto, sabia que voltaria. Por isso despertei na areia, tossindo salgado e gritando ao vento. Pessoas como você me olhavam assustados, apontando para as escamas em minha pele. Eu não era mais um de nós. Era agora um abissal, ser sublime da escuridão.

Ao olhar pra trás percebi que o mar só existe depois do mergulho,

antes disso é sol e sorvete.

Só eu fui até o fundo.

Só eu brinquei de ciranda com os abissais.

Só eu vivi na morte e tomei um gole de Atlântida.

Eu levantei, sorri para todos e fui pra casa. Não havia completado a missão. O mundo continuava a crescer. Mas vi coisas que você nunca verá, e hoje sou o que você não sabe.

A água lenta e o mar feroz me moldaram como outro.

Hoje visto um terno e escondo minhas marcas. Hoje eu olho para os lados na rua e respondo quando me chamam. Sei todos que dormem no ônibus, e chamo o motorista pelo nome. E, após conhecer todos os aromas desse mundo, o cheiro do esgoto me estremece.

É isso que lembro daquele dia que durou anos, e de um homem que nunca mais serei. Sei que ninguém vai acreditar, mas isso nunca importou. O que importa é que o abismo nunca mais me ameaçou.

E quando eu despertar novamente em um dia sem medo, eu vou tomar café e assistir TV. Pois, como disse a minha amiga poeta:

O mundo demora mais do que um dia.

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