Eu vejo você

Morrendo acordado

Raphael Kepler
LAPSOS
Published in
2 min readFeb 15, 2019

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Eu vejo você.

Eu vejo você na fila do pão. Comprando revistas. Bebendo escondido. Eu vejo você no banho. Nas praças. Nas areias da praia. Eu vejo você mudando de calçada. Fingindo dormir no ônibus. Mentindo a idade.

Eu ouço seus desejos, farejo seus medos e sigo seus rastros. Eu sou a sombra embaixo da cama, o suspiro em seu ouvido. Eu sou o nada apesar de tudo. Quando você abrir a porta eu estarei lá, com o isqueiro na mão.

Você vive um passo após o outro, um sopro na vela e um pedido no escuro. Eu vivo um outro após o passo, um pedido no sopro e uma vela no escuro.

Sapato novo sem rugas de ontem, camisa, botão, dobras e risos.

Eu vejo você.

Eu vejo você transando no beco. Bebendo o branco. Sem medo da lua. Vitamina C. Zinco. Suor na camisa. Dedo na garganta.

Abra os olhos, vamos para casa. Seu castelo de areia. Eu vejo você brincando na rua. Tosando o cachorro e colando adesivos.

Seu cheiro é doce. Amargo fruto de incerteza. Choro de mãe. Riso de dor. Cadernos vazios no canto do quarto. Cigarros à noite, refúgio do medo. Na cama. Sorrindo para o vento. Morrendo acordado. No meio de tudo, correndo a maré…

Eu vejo você.

Sua vida é barata, TV com café e rádio no carro. Batendo ponto, manteiga no pão e sorriso na foto. Agora você deita na cama, finge sono e cobre os ouvidos. Mas nada que você faz te deixa feliz, pois você começa a sentir meu olhar sobre seus ombros.

Não adianta olhar para trás, checar as janelas ou acender a luz. Eu continuarei respirando em seu pescoço e te fazendo acordar. Eu não tenho escolha, fui criado assim e de nada adianta reclamar aos céus.

Você pode até ir pra igreja, rezar em voz alta e gritar para Deus. Mas eu estarei sentado ao seu lado dentro do ônibus, enquanto você finge dormir.

Eu vejo você.

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