Ninguém

Nem mesmo você

Raphael Kepler
LAPSOS
Published in
3 min readFeb 14, 2019

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Se há uma certeza é que ninguém se importa.

Ninguém se importa com as suas dores nas costas, com seu filho que repetiu de ano. Ninguém liga se você descobriu um tumor na cabeça, se sua visão está falhando. Seu ascendente é irrelevante. Suas memórias são músicas de elevador para os ouvidos de seu terapeuta.

Ninguém pensa em você antes de dormir. Tanto faz se seu coração parar de bater durante a noite. Tanto faz se uma torradeira cair dentro de sua banheira.

Seu medo do escuro é motivo de piada, e suas músicas favoritas são a trilha de um filme que nunca será produzido.

Sua mãe não se importa se você está levando o casaco. Seus professores nunca leram seu nome na chamada. Nenhum de seus sonhos se realizará, e seus pesadelos te esperam no fim do corredor.

É melhor aceitar e se fingir feliz. Todos fazemos isso. Faz parte do processo disso que chamamos de “seguir a vida”.

Eu não me importo com a vida, com os bandidos nas esquinas.

Não quero entender os segredos da humanidade, descobrir verdades enterradas, ou ser ídolo de alguém. O que importa é se estarei vivo para mais um gole de café, um bocejo no fim do dia, e mais uma noite sem dormir.

Vivemos sozinhos, em frações de empatia. Vivemos com medo de viver, acuados em nossas salas. Vislumbramos o pior pela janela, agarrados em mentiras. Acreditamos que nada importa, que somos fantoches de um teatro psicótico. Mas não percebemos a sorte de sermos ímpares, frutas verdes ainda no pé.

Eu não penso no azar alheio, na carne podre na geladeira, nas mortes em acidentes. Eu penso em reflexos no espelho, brisa fria de manhã e acordes dissonantes. Eu quero é tatuar meu rosto com letras frágeis e venerar minhas cicatrizes.

Não quero viver.

Quero transcender.

A poeira na gaveta me traz a paz que eu espero no fim. Um sorriso na hora certa. Todos temos fetiches. E eu sei que fetiche é coisa de quem se importa. Mas eu não ligo. O desejo é a fogueira de minha fumaça. E essa torrente é feroz. Vazia de vaidade, repleta de escárnio.

Quem sou eu, senão um estranho de meu amanhã?

Quando a tempestade se aproximar, proteja-se. Você é o único herói de si.

E se os vermes ameaçarem comer sua carne, deixe. Não vale a pena o esforço. Faça vista grossa para as desgraças e permaneça em seu casulo. Se tudo der certo, no fim, você receberá o lucro e a glória por tudo que deixou de fazer.

Mas, se você quiser, tente mais forte. Entregue-se ao amor e feche os olhos na montanha russa. Escolha o lado mais afiado da lâmina, pule no abismo. Mas não me culpe. Não culpe a si mesmo.

Somos as únicas vítimas de nós.

Erga um templo para suas vaidades, e destrua seu altar.

E quando os prédios caírem e os oceanos vazarem, eu estarei no topo do mundo, varrendo a sala.

E você poderá me encontrar se quiser.

No fundo do copo,

no cano frio,

na seringa.

Vivemos pela dor, e para ela somos deuses.

E quando você cair, ninguém se importará.

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