O Vazio na Neblina

Não é ninguém, mas pode ser

Raphael Kepler
LAPSOS
Published in
5 min readMar 15, 2019

--

Já era noite quando cheguei na esquina.

Apaguei o cigarro com o tênis e soprei a fumaça. Minhas mãos tremiam, e o suor escorria no rosto. Era uma madrugada fria. Vazia. Essas de filme. Eu chequei a hora com receio, mas ainda era cedo.

O relógio fez eu lembrar de meus pais, e logo me vi tendo que segurar o choro. Eu não poderia mais voltar pra casa. Não poderia mais deitar no sofá e esperar enquanto minha mãe me faz um suco. Eu quase desisti de tudo e quase corri de volta. Mas eu fiquei ali, parado em um canto mal iluminado.

Esperando.

Existe algo curioso nas madrugadas. Qualquer som parece uma sinfonia, e há uma presença constante atrás das árvores. Não é ninguém, mas pode ser, e isso arrepiava meus pelos.

Eu vi gatos nos muros, morcegos trocando de árvores e moradores fechando janelas. Eu vi postes piscando e ratos entrando em bueiros.

Um tempo depois eu vi os faróis lá no fim da rua, invadindo a penumbra e me despertando de meus pensamentos. Um carro preto se aproximou, cada vez mais lento. Tocava uma música eletrônica lá dentro, e eu saí das sombras, anunciando que eu era eu.

São esses momentos que me fazem ter certeza que o silêncio existe até mesmo entre a confusão de um barulho distorcido. Entre o carro e eu havia um espaço em branco, uma ausência de vida, um vazio na neblina que só sentimos quando o medo se aflora em nós.

A música parou e o vidro desceu, rangendo mais que o normal. Eu tirei o relógio do bolso e o entreguei. Era o relógio do meu pai, relógio caro e antigo, de família. O motorista me olhou dos pés à cabeça com o olhar gélido, e então abriu um sorriso ligeiro antes de conferir o objeto.

Eu nunca fui bom em nada na vida. Eu sempre tive medo de tudo ao meu redor. E agora as pontadas no estômago me fizeram ter mais coragem. Coragem de oferecer tão pouco em troca de tanto. Mas eu estava confiante que daria certo.

Até que ele me perguntou o que mais eu tinha, com o sorriso desaparecendo de seu rosto.

Eu abri e fechei a boca umas dezenas de vezes, buscando as palavras. Ele disse que aquele relógio pagava a dívida de semana passada, mas que eu tinha outras dívidas.

Eu percebi que as risadas pararam, e senti a urina escorrer em minhas pernas.

Eu quase ouvi a voz de minha mãe, os gritos do meu pai, e por um segundo eu senti falta de tudo isso. Eu sequei meus olhos e encarei com convicção a poça que se formava em meus pés.

A porta do carro abriu, e todos saíram lá de dentro, portando suas pistolas. Eles me olhavam, incrédulos, se divertindo com a situação. Eles apontaram para mim, dizendo que eu havia me mijado, e gargalharam com aquilo.

Eu lembrei de mais cedo, quando invadi o quarto de meu pai. Eu esperei ele entrar no banho e peguei seu relógio no armário. Minha mãe nem mesmo me viu saindo de casa. Isso fez meu peito queimar, e eu quase gritei de desespero.

Mas eu sou covarde até mesmo para gritar, e por isso caí de joelhos e implorei. Implorei por perdão, implorei por mais droga, implorei para Deus me ajudar.

Mas o motorista se aproximou de mim e perguntou novamente o que eu tinha para ele. Eu não tinha nada, por isso chorei feito criança, vomitando sobre meu próprio mijo.

Tudo havia começado na escola. No início eram doses pequenas, apenas por diversão. Meu corpo mudou por causa disso, minha mente mudou. Eu me entreguei cada vez mais, até que logo eu me vi gastando todo o dinheiro que recebia de minha mãe com essa merda, e agora estava roubando de minha própria família.

E mesmo assim não era o bastante pra negociar com esse homem tão ganancioso.

E, bem, você sabe o que acontece quando não pagamos homens gananciosos…

Ele colocou o relógio de meu pai e jogou meu corpo no mato, sem ao menos olhar pra mim. Entrou no carro, e seguiu de onde viera. Mas dessa vez não havia música. Havia apenas risos e conversas sobre onde eles comeriam em seguida.

Eu vi morcegos nas árvores, gatos trocando de muros e moradores abrindo janelas. Eu vi postes piscando, e estações mudando.

Ratos vasculharam meus bolsos, baratas botaram ovos em minha boca, e as chuvas lavaram meu sangue.

Se eu estivesse vivo, teria sentido frio.

Teria aproveitado os trovões.

Se eu estivesse vivo, poderia correr de volta ao colo de minha mãe, ser internado em algum lugar fétido qualquer, e poderia ter vivido isso aí que você chama de vida. Se eu fosse um pouco mais esperto, eu não teria escolhido aquela esquina. Mas eu nunca fui esperto.

Nunca fui nada.

Meu corpo foi encontrado por uma senhora atraída pelo cheiro. Fui jogado dentro de um saco preto por dois caras que debatiam sobre futebol. E meu corpo foi aberto por um médico que ouvia sua playlist preferida durante a autópsia.

Um tempo depois o relógio de meu pai repousava no pulso de outro traficante. O assassino de meu assassino. E aquele objeto, antes importante e sem preço, agora não tem valor e passa de mão em mão como um mórbido troféu.

Meus pais já haviam desistido de mim, e nunca foram em minha procura. Eu sempre fui um grande problema para todos. Minha mãe de vez em quando chora pelos cantos, limpando as lágrimas com a roupa. Mas eu nunca sei se ela chora por mim ou pelo que nunca fui. Meu pai é um homem duro, e por isso segue a vida como sempre, sentindo mais falta de seu relógio do que do filho.

E eu?

Bem, eu sou apenas um número, um drogado que morreu. Minha identidade não é importante, e minha idade não se sabe. Ninguém chorou a minha falta, ninguém faz brindes em meu nome.

Eu sou o vazio na neblina.

Último episódio do ANOMIA (Meu podcast):

Você pode assinar pelo Spotify, ou com o RSS Feed em qualquer app de podcast.

Onde mais estou:

Twitter | Instagram | Youtube | Podcast | Músicas

--

--