renata benia
LAVINT
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7 min readNov 27, 2019

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World Press Photo: 2017 Photo Contest, Long-Term Projects, Stories, 3rd prize — Markus Jokela

Quando o testemunho fotojornalístico nos convida à absorção: experiência estética a partir de imagens absortivas

Se quisermos pensar sobre imagem absortiva, teremos que mobilizar duas dimensões; imagens absortivas que nos conduz à imersão, nos pungem ao seu referente ou motivo visual; e sobre o estado de espírito ou atividade absorta de um sujeito representado imageticamente.

Para entendermos implicações deste tipo de representação, primeiro devemos considerar a tradição histórica da iconografia pictórica clássica que é a linhagem originária deste tipo de imagem. Esse tipo de representação efervesce com as pinturas setecentistas, no final do Rococó, com Greuze e Chardin, por exemplo¹. O que historiador da arte Michael Fried observa nas imagens absortivas da pintura setecentista pode nos auxiliar a pensar sobre os desdobramentos destas imagens, em especial, no fotojornalismo, ou até mesmo no cenário sócio-cultural no qual mediamos relações de representação (em redes digitais, em espaços físicos etc.).

A absorção presente em cena pode favorecer leituras contemplativas (embora nem sempre afastadas do drama, é preciso lembrar) e, principalmente, orientará ritmos de leituras mais atentos através da intrigante falta de referência imediata causada pelo aspecto lacunar e enigmático destas imagens. A aparição destes tipos de imagens revela um contrato de leitura firmado no aspecto lacunar, na possível contemplação do observador e de um diálogo com as artes; nos chama ao pensamento sobre como o fotojornalismo tem buscado outras abordagens e outras visualidades para a construção do acontecimento visual.

Sabemos que no cenário atual há um acento de saturação imagética. Um grande número e repetição de imagens altamente impactantes voltadas aos efeitos negativos de emoção pode provocar uma saturação imagética que nos leva a um anestesiamento com tais imagens, como observou Sontag, isto é, a uma fadiga emocional, já constatada em estudos clínicos que tendem a averiguar as respostas cognitivas e afetivas dos sujeitos². Somos afetados por uma torrente de imagens diariamente, dentro elas, imagens de acontecimentos da atualidade no terreno do fotojornalismo. Tal excesso nos faz reconhecer as consequências na relação do leitor com as imagens do fotojornalismo, promovendo uma crise que nos leva a um menor grau de atenção e percepção, e por isso, muitas imagens passam despercebidas ou vagamente percebidas.

Outro foco de extrema importância é a disseminação de repetidas imagens que se comprometem com o tempo presente da ação do evento e que, em função da acessibilidade ao dispositivo da câmera, se delega a qualquer sujeito o papel de registro dos fatos e disseminação destes. Há uma enxurrada de imagens produzidas pelas câmeras digitais amadoras que aos poucos vai ocupando espaços na mídia e colocando em xeque o papel do fotojornalista.

A Life in Death por Nancy Borowick — premiada pelo World Press Photo em 2016 (categoria projetos de longo-prazo). As imagens representam os capítulos finais de um casal que conviveu com câncer. A abordagem é distanciada das imagens-choque, imagens-ação e ápices do momento.

Diante desta ‘crise’, alguns fotógrafos têm adicionado outros olhares para oferecer a visualidade dos acontecimentos, e oferecer aquilo que Poivert reconhece como sendo uma ‘estetização’ do fotojornalismo, e que Ritchin analisa como sendo narrativas para além da posição de o fotógrafo estar no local exato do evento e no instante imediato, no presente do acontecimento. É por isso que se torna mais comum nos dias de hoje nos deparamos com fotografias jornalísticas que capturam para além do flagra; se voltam para o ocorrido após o seu término, os vestígios de tragédias, os desdobramentos dos contextos particulares e mais amplos das pessoas envolvidas nos testemunhos visuais jornalísticos. O certificado de presença e o papel de prestar contas com o real são desvinculados da função primordial da fotografia, já que distancia-se do caráter objetivo, do ‘isso-foibarthesiano.

Para além do mero abandono de um ‘instante decisivo’ bressoniano, há uma ruptura das expectativas de leitura do regime visual jornalístico, que solicitará do leitor uma leitura mais focalizada em busca do preenchimento de lacunas, a fim de possuir noções mais profundas sobre o acontecimento registrado. Há igualmente uma experiência da estranheza que inquieta o olhar, chamada como “desorientação”; discutida com maior fôlego em “O que Vemos, O que nos Olha”’ do teórico Didi-Huberman, a partir do pensamento freudiano sobre o inconsciente no tocante ao visual.

Um bom exemplo para exercitarmos o olhar sobre esse deslocamento das matrizes visuais do fotojornalismo que opera dentro da dimensão da estetização das imagens é o trabalho fotográfico de Markus Jokela, premiado em 2017 pelo World Press Photo. As imagens de Jokela indicam um espaço para a abertura da imaginação do observador e nos ilustra um provável regime absortivo imagético. São narrativas mais amplas que pedem uma participação de leitura mais lenta e atenta. É como se o testemunho fotográfico fosse silencioso, e lhe faltasse certo grau de potência para nos comunicar referencialmente o acontecimento e precisasse, portanto, do agenciamento de leitura mais demorado e concentrado do observador.

Tentemos observar Peyton Schaardt assistindo TV (figura abaixo). A menina está absorta, em um estado de atenção que parece ignorar o fotógrafo, e ainda, que parece potencializar a sensação de encenação pela presença de uma “quarta parede”. Não nos conta sobre um ápice de um acontecimento que pudesse ser extraordinário, não é uma representação esperada em espaços do fotojornalismo onde o imediatismo e o extraordinário são contemplados.

Peyton Schaardt assistindo TV em 2013, por Markus Jokela — World Press Photo (2017)

Olhemos para outra imagem: Matt dentro do ônibus.

Matt dentro do ônibus (1992), por Markus Jokela — World Press Photo (2017)

Quando não sabemos para onde a atenção de Matt é dirigida e o que Peyton observa, e sobretudo, qual acontecimento principal envolve os dois, destravamos uma abertura imaginativa que deseja preencher a falta de elementos na imagem, criando novas imagens e tempos.

No processo de leitura, em meio à instância espectatorial, o observador se torna uma espécie de testemunha e espião do acontecimento, e experimenta um papel de observador vicário. A presença humana (de Matt e Peyton) nos convida a participar da cena, na medida em que nos guia a uma direção e a um sentido do acontecimento representado na cena. A fisionomia dos sujeitos e o cenário dividem a atenção do observador. É iminente uma curiosidade, acompanhada de um desejo visual, dentro do contexto daquilo que ainda não contatamos visualmente em sua plenitude.

A própria composição (com plano aberto) solicita que o observador percorra o cenário em um trajeto no qual se averigue os elementos constituintes do acontecimento e do sujeito registrado. A sensação de vazio nos cenários, e o fato de as duas crianças estarem sozinhas neste ambiente em uma posição estática (na qual os gestos não sugerem uma temporalidade específica; não existe uma ação sendo manifestada, nem rastro desta ou um indício), pode nos leva a devotar maior atenção no exercício de olhar, nos conduzir a um recolhimento dentro da cena, sugerindo sensação de participação. Por uma base similar, a iluminação também orienta o olhar, e um exemplo disso é a ênfase em determinados pontos da cena. Os focos de luz são percebidos na medida em que levamos o nosso olhar para os sujeitos na cena, garantindo um acento para eles.

O fato é que não há um regime teatral, mas sim aquilo que Michael Fried denomina como uma “antiteatralidade”, causada pela abolição da presença do artista como aquele que teria o seu papel em parte da cena e ainda, pela inconsciência do modelo sobre a presença do observador (há a ilusão de que ninguém se esconde ou posa para o fotógrafo). Ao mesmo tempo em que nos tornamos observadores invisíveis, podemos ser absorvidos nos momentos dos personagens inseridos em cena.

Essas imagens absortivas são imagens que nos deixam em suspensão e tensionam matrizes visuais já reconhecidas dentro do terreno do fotojornalismo (descolando-se da iconologia da ação e do choque, mas não desconsiderando uma dimensão patémica da recepção). Poderíamos dizer mais: são imagens que possibilitam uma experiência estética ligada à imaginação. São imagens que nos carimba o convite à experiência da absorção.

¹ para melhor entendimento do movimento teórico e artístico das representações absortivas: entrar em contato as noções derivadas do historiador da arte Michael Fried que se ocupam justamente desse ‘primado da absorção’ (termo designado pelo próprio autor).

² sobre os estudos clínicos que tratam da recepção afetiva, sensorial e cognitiva a partir da visualização de imagens de cobertura fotojornalística, ver: Höijer, Hillman; Rosengren; Smith, Iyer; Webster; Hornsey; Vanma, Zarzycka e Kleppe

| outras versões deste texto podem ser lidas em: Intercom e Redegrafo

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renata benia
LAVINT
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doutoranda em comunicação (UFF) . membro da redegrafo - rede de pesquisa em teoria e análise da fotografia e narrativas visuais.