E se você não tiver um sonho profissional?

Marília Chaves
Lean In SP
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6 min readMar 21, 2019

Dias atrás eu estava conversando com uma amiga próxima que possui um dos trabalhos mais difíceis de se ter, ela é delegada de polícia. Ela é uma dessas pessoas que vive e respira o trabalho, entregando para além dos plantões as horas de lazer que se dedica pensando nos casos a resolver, acompanhando grampos telefônicos, refletindo sobre o quadro geral daquilo que faz. Para mim, ela representa o exemplo de viver com propósito sobre o qual lemos tanto desde que esta década começou.

Todos sempre têm um objetivo, um próximo sonho, que está alinhado à sua missão de vida, ao significado de existir nesse mundo.

Em algum momento, ouvindo ela falar sobre a última "treta" que tirou seu sono e parou sua vida por semanas, não consegui me conter, tomei um gole da taça que tinha nas mãos e numa respirada só soltei a frase que martelava na minha cabeça pelos últimos 15 minutos:

"Eu acho que não tenho sonhos."

Silêncio constrangedor. Seguido de um abraço, palavras de consolo sobre como essa fase vai passar, que todos nós temos um propósito, e agora é só trabalhar para achar o meu. Ela falava como se eu fosse uma mulher assumindo que está infeliz no casamento, prestes a ter um amante. Mas a verdade é que sou muito feliz, e o trabalho é parte disso, mas sempre tenho um pouco de dificuldade de definir o que é esse "feliz na carreira", "alinhada com o propósito de vida" de que se fala tanto. Gosto do que faço, dei sorte de trabalhar com algo que tem a ver comigo e no qual sou boa, mas poderia fazer outra coisa. Sou uma pessoa intensa no trabalho como sou intensa para reformar um móvel ou planejar o aniversário de uma amiga. O trabalho pode ser comparado a uma daquelas máquinas automáticas de refrigerante. Eu insiro o tempo e a formação em cima e lá embaixo cai o dinheiro e a reputação. Cometi o erro de também fazer essa alegoria para a minha amiga. Agora ela me manda mensagem a cada dois dias perguntando se estou bem, porque deve ter parecido terrivelmente depressivo falar da própria profissão assim.

Há muitos meses questiono se tenho um propósito ou um sonho profissional, pois já os tive antes, e, de alguma forma, eles foram todos realizados. E todo mundo que fala de trabalho hoje em algum momento falará de propósito. Todo autor de autoajuda, especialista em carreira, coach ou mesmo a sua mãe vai falar de propósito quando você disser para ela que não sabe mais o que fazer da vida. O discurso circulante é o da supremacia da felicidade transcendente, que mesmo tão sublime consegue caber num plano de cinco anos. Você precisa realizar seus sonhos, mudar o mundo daquele jeito que só você saberá fazer e principalmente pagar boletos enquanto vive essa jornada do herói na terra. É como se na esfera do trabalho tivessem dado um jeito de inserir nossa espiritualidade, essência, afetos, sequestrando nossa alma para além do horário do expediente.

Mas que raios de legado profissional é esse que vai dar significado a toda a minha vida?

Enquanto penso que pode ser duro viver sem o filtro do propósito transcendente, deixo aqui o questionamento: se você não tiver uma missão de vida, isso vai impedir o seu crescimento? Você se torna incompetente? Ou mais: vai impedir que você se sinta merecedora dos benefícios que o seu trabalho árduo e sem propósito deve lhe trazer?

Teriam os bilhões de trabalhadores braçais do mundo um propósito de vida? Só o seu papel essencial para a sobrevivência da humanidade é o suficiente para que sintam que nasceram para algo? Ou seriam todos infelizes? Ou inconscientes?

E já que começamos a perguntar, será que a exigência de um propósito não é apenas uma nova forma de colocar culpa sobre o que fazemos?

Afinal, como você vai dar tudo de si e se destacar, se nem é essa a sua missão no mundo? Mas por que mesmo você deveria dar tudo de si? Quer dizer, TUDO de si? Tudo de mim deus permita que ninguém tenha, o nome disso é relacionamento abusivo, não propósito. Isso é trabalho, você já dá uma parte considerável de quem é. Precisa sobrar a outra para os hobbies, os amores, os ócios.

A falta de um propósito brilhante no centro de quem eu sou como profissional já me fez forçar propósitos que não existiam ou simplesmente me tirou emocionalmente de situações competitivas, momentos antes de assumir uma postura de protagonismo, afinal, eu não mereceria brilhar se ali não estava dando tudo de mim. E aproveitando que estamos em um ambiente de liderança feminista: você já ouviu de um homem reconhecido e bem remunerado esse discurso com a mesma carga de sacrifício? Deixando de brilhar porque, supostamente, aquilo não é a grande coisa que veio fazer na vida?

A questão do propósito é frequentemente apontada como um balizador do foco, uma forma de motivação porque assim você teria algo maior pelo qual trabalhar. Mas esse algo maior pode se manifestar em outras áreas: sustentar os seus filhos, adotar mais animais, viver em paz consigo mesmo, trazer conforto para a velhice dos seus pais, ter tempo para ser uma pessoa espiritualizada. Por que necessariamente o significado da minha existência na terra precisa ser validado pela esfera do trabalho remunerado?

A maioria das pessoas tem um grande sonho de carreira ou acha que tem. E talvez a narrativa do sonho de carreira esteja complicando a nossa autonomia de pedir por mais dinheiro ou competir de forma saudável para chegar a posições de maior destaque.

Se o seu trabalho representa o seu propósito de vida, então se expor profissionalmente pode ser arriscado demais, como uma radiografia da alma. E se não for uma alma tão interessante assim?

Entender que não tenho mais sonhos porque realizei os maiores, e muitos não moravam na carreira, me desobrigou de muita ansiedade e de muito trabalho mal remunerado. É possível encarar que talvez o propósito de carreira esteja na jornada, no caminhar diário sempre aprendendo alguma coisa nova, e que o dinheiro virá conforme entregamos o que dá para vender com as nossas habilidades. Nos últimos meses, tenho me desobrigado de ser esse floco de neve único e especial que veio mudar o mundo com o seu talento. Sou só uma boa profissional, não sei responder qual é meu grande sonho.

E talvez seja a hora de você também encarar que não tem um propósito, tem apenas um ofício, e é excelente nisso. Receba os louros sem culpa. Aos poucos aprendo que não há defeito algum em passar um tempo sem propósito, sem sonhar, isso não é falta de nada — muito pelo contrário, esse período está se provando cheio de presença, crescimento, aprendizado.

Ou talvez eu esteja apenas coletando habilidades, prestes a dobrar a esquina para dar de cara com o meu próximo sonho, por que não?

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Marília Chaves
Lean In SP

Ghost-writer, roteirista, editora, escritora, redatora, coordenadora Lean In SP. Trago o texto perdido em 3 dias ou seu dinheiro de volta.