Onde compra criatividade?

Aila Silva
Lean In SP
Published in
4 min readJun 29, 2020

Rimas feitas na hora sob a pressão de um rival no microfone que falha, emboladas prolixas num metrô lotado de plateia hostil, um site tão intuitivo e lindo que chega a ser óbvio, uma roupa que mais parece uma obra de arte renascentista de tão encantadora.

Onde a gente compra criatividade?

Sempre que ouço a palavra 'criatividade', outras vem junto, quase como uma extensão: talento, dom, epifania, toque divino. A pessoa criativa é praticamente a reencarnação do Da Vinci com a Kim Kardashian, sei lá… o fato é que ouço diariamente das pessoas “ai, não sou criativa” ou “vem aqui e me dá uma ideia pra festa? Você é designer, supercriativa!”

1.

Criatividade é a capacidade do ser humano produzir coisas, criar meios para a solução de um problema que não havia antes. Só. Acabou aí.

2.

Criação não está ligada a algo místico, advindo de forças astrais (exceto se você for aquariana), mas, sim, há uma série de aprendizados, repertórios distintos, vontade de oferecer uma solução nova num ambiente onde aquilo não havia sido utilizado ou testado.

“Neurologistas, psicólogos, cientistas sociais, publicitários e pesquisadores das áreas mais diversas, da inteligência artificial à poesia, buscaram respostas para a pergunta: é possível explicar a criatividade?” Bom, as respostas apontam para o sim! São muitos fatores e pesquisas das mais variadas bases; aqui vamos focar na primeira camada: o que eu faço hoje?

Mantra diário: criatividade é repertório. Isso mesmo, nada se cria, tudo se copia… é mais ou menos isso. Quanto mais você sabe sobre engenharia industrial, sobre as políticas hidráulicas do Paquistão, sobre tendências de design, cores, quanto mais livros diversificados você lê, maior o número de sinapses na sua cabecinha. Sinapses? Isso, aquelas conexões intraneurais que levam informação de um neurônio a outro. Quanto mais temos, maior nossa capacidade cognitiva, portanto criamos “mais ideias”.

A alimentação na infância bem como medicações fortes interferem nas sinapses adquiridas ao longo da vida. Isso reflete diretamente na formação cerebral e, embora não seja o nosso foco, precisamos nos lembrar disso para não flanar num mundo ilimitado, onde impera aquele pensamento “se você quiser muito pode ser o que quiser”. Até pode, entretanto ritalina e má alimentação são fatores que impactam diretamente na formação cerebral, então vamos não descolar da realidade.

O que você precisa guardar até aqui: aceite e use todo o seu repertório de vida de forma fluida e gostosa. Tudo o que viveu contribui na forma de você “criar”, desde o tema da festa infantil do seu filho à resolução de um caso de direito penal.

Criatividade não tem área. Vamos aqui falar de Van Gogh? Todo mundo concorda que ele foi genial? (Gritos de sim ao fundo) Muito que bem. Ele nunca conseguiu desenhar sem observar o que estava desenhando. Em algumas das cartas dele, existe um tom de frustração por nunca ter conseguido fazê-lo. Vocês conseguem imaginar nosso Vincent, no boteco, tristezinho dizendo “Gente, não sou criativo, não conseguia desenhar meu próprio quarto sem estar olhando, blá, blá, blá…”

Eu consigo.

Temos a falsa percepção de que a criatividade está exatamente onde não conseguimos exercer, só que é o oposto. Nós enxergamos como criativo aquilo que a gente não consegue fazer (pintar um quadro, tatuar, parecer hipster na rua, sei lá) e esquecemos que a criatividade não é parecer criativo. Criatividade é se divertir! Ela não está no mito da grande ideia, está nas pequenas diversões que seu cérebro é capaz de ter enquanto você não está reclamando do quanto não é criativa.

Amanda Palmer (escritora, musicista, performer, musa) tem uma passagem incrível em seu livro dizendo que, para ela, criar é um grande liquidificador onde coloca o que sente, o que sentiu, o que aprendeu, o que viveu, o que gostaria de ter vivido e bate tudo. Às vezes a mistura é densa e mostra muitos traços da sua própria realidade, às vezes é tão líquida que a imaginação se confunde com o real.

A pessoa que tem a capacidade de analisar e achar soluções práticas e necessárias para o desenvolvimento de um processo do Bradesco é tão criativa quanto o ilustrador que captou a maçã caindo da árvore numa tarde de verão. Achar um novo processo químico para utilizar os restos de plástico do laboratório requer a mesma criatividade de uma coreógrafa para seu novo espetáculo.

Mas dá para treinar a criatividade? Ô se dá! Não falamos lááá no começo sobre repertório? Pois é, isso é treino. Mas dá pra testar a cabeça de várias formas, preenchendo sudoku, fazendo uma aula de FitDance, aprendendo xadrez. Tudo o que mostre um ponto de vista diferente do seu. (Fica aí uma dica: exercitar a empatia também conta!)

3. (é o último ponto, prometo)

Sua criatividade não pode ser valorada. Não dá para colocar sua cabeça à mercê apenas do mercado de trabalho. Sua mente inventora precisa ser livre (como você) para explorar mundos e infinitas formas de construir a vida.

O fato é: relaxa e faz! O exercício do fazer é criatividade pura. Fazer o quê? Qualquer coisa! Jogar futebol, ler livros novos, pirar numa maratona de séries, conversar com as montanhas, se perguntar o que o mundo tem falado para você, participar da reunião da área parceira e ouvir como eles pensam e, principalmente, se deixar sentir prazer nisso. Brincar é, sim, criar um universo.

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Aila Silva
Lean In SP

flor de deserto em asfalto quente. ou artista da dança, pesquisadora e comunicadora cultural.