Pessoa e não-pessoa

Gisela Guarienti
Lean In SP
Published in
6 min readJun 3, 2019

É sábado a tarde e uma moça está a caminho de um compromisso. Parada na calçada de uma avenida muito movimentada, ela aguarda o farol ficar verde para poder atravessar. Enquanto ela aguarda, um morador de rua se aproxima:

Oi moça, sou morador de rua, não fica nervosa, não vim para assaltar.

Ele levanta a camiseta para mostrar que não está armado. E continua:

Sabe o que é, é que eu moro ali naquela rua (aponta a direção) e hoje de manhã os policiais nos expulsaram. Levaram tudo que a gente tinha. Ficamos sem nada mesmo. Tem adulto e criança. Se você puder ajudar a gente com qualquer moeda!

A moça então lembra que tem uns trocados de uma compra que ela fez algum tempo antes e diz:

Olha, moço, não posso contribuir com muito, mas acabei de lembrar que tenho dois reais aqui.

Ela então abre a bolsa discretamente e retira o dinheiro. Enquanto a moça entrega o dinheiro para o morador de rua, três policiais em cima de motos chegam rapidamente, subindo em cima da calçada. Eles param contendo o morador de rua e imediatamente abordam a moça.

Olá moça, o que está acontecendo aqui? Pergunta um dos policiais.

A moça então tenta se recompor do susto que a abordagem dos policiais gerou.

Nada, policial. Estava apenas dando um dinheiro para esse morador de rua.

O policial, pouco convencido com a resposta, questiona:

Ele estava assaltando a senhora?

Não, responde a moça.

A moça tem certeza? Parecia um assalto, insiste o policial. Ela então confirma que não era um assalto.

Enquanto a moça conversa com este policial, os outros dois já desceram das motos e iniciam uma abordagem ao morador de rua. Ela então, um pouco perplexa com o andamento dos fatos, pergunta nervosa:

Por que vocês estão interpelando o morador de rua? Ele não fez nada. Já confirmei isso a vocês.

Os policiais pedem para ela se afastar. Ela se nega e diz que vai acompanhar toda a abordagem. Ela não queria que nada acontecesse ao rapaz e sentia que aquilo podia sair do controle rapidamente. Dentro dela havia a certeza de que estar ao lado dele era o mínimo que podia fazer.

Então, os policiais revistam o morador de rua, várias vezes, checam se ele não está armado, removem o boné que ele usa, pedem documentos e o rapaz entrega um papel amarelo, onde a moça acredita que os dados do morador de rua estão anotados, pois documentos, claramente ele não têm.

Enquanto um dos policiais usa seu rádio para checar as informações do morador de rua (provavelmente em uma central da polícia), um dos outros dois segue questionando o rapaz. Finalmente, como não há nada para incriminá-lo, os policiais terminam a revista e liberam o rapaz.

A moça, visivelmente abalada, pergunta ao morador de rua:

Você está bem? (Ele balança a cabeça afirmativamente). Me desculpa por isso, de verdade. Boa sorte, cara.

Rapidamente o morador de rua desaparece.

Então, o policial que havia abordado a moça inicia um ‘sermão’, informando que a atitude dela em acompanhar a abordagem tinha sido perigosa.

Se ele não fez nada, seria perigosa por quê? Se ele não estava armado, seria perigosa de que maneira? Além disso, você o revistou apesar de eu ter dito que ele não tinha feito nada, disse a moça.

Mas ele podia estar armado e, inclusive, checamos aqui e ele foi presidiário durante 14 anos, responde o policial.

Puxa vida, seu policial, quem nunca cometeu erros na vida, né? A moça já mais calma, mas ainda nervosa, respondeu.

O policial continua sua reprimenda argumentando que a moça estava errada em acompanhar a ação policial, que colocava a vida dela em risco, a dos policiais também. Em nenhum momento a vida e a segurança do morador de rua tiveram alguma importância para aquele homem, que completa:

Percebemos que tinha algo estranho acontecendo e paramos para averiguar. Num primeiro momento, parecia que era um assalto.

Sim, policial, você tem razão, e fico contente por vocês estarem atentos, mas, a partir do momento que informei que não estava nada acontecendo, o rapaz não deveria ter sido revistado.

É, mas a moça estava bem vestida (querendo dizer que ela estava bem vestida e o morador de rua não), era uma situação incomum (uma pessoa bem vestida falando com uma pessoa que estava de chinelo e bermuda) e a gente precisava ter certeza de que a moça estava falando a verdade.

Pois é, policial, veja bem… Podia ser eu uma pessoa bem vestida vendendo droga ou qualquer outra coisa, não acha? Bom, ok, policial. Bom trabalho e até mais.

Ela apertou a mão do policial, se despediu e foi embora para seu compromisso.

Não precisa ser dito a cor da pele da moça, muito menos a do morador de rua. Ali, naquele momento, ela entendeu, da pior forma possível que cor da pele, as roupas que você usa modificam o julgamento que as pessoas têm sobre você. Mas jamais deveriam.

Foto: Davidson Luna

O antropólogo Marc Augé cunhou o termo “não-lugar”, buscando criar uma referência para os espaços de passagem que significam algo pelo seu simbolismo, mas não agregam um pertencimento por parte das pessoas. Como estações de metrô, por exemplo, onde as pessoas apenas passam para chegar efetivamente a um lugar. Avaliando essa situação poderia até tomar a liberdade, Marc Augé que me perdoe, de entender que, para a nossa sociedade, também existem as pessoas e as não-pessoas. Daquelas que devem ser protegidas (a moça) e aquelas que não tem um valor atribuido (o morador de rua), aquelas que você nota e as que você faz de conta que não viu.

Se voltarmos por um instante à análise da modernidade como coexistência desejada de mundos diferentes, constataremos que a experiência do não-lugar como afastamento de si mesmo e colocação à distância simultânea do espectador e do espetáculo nem sempre está ausente disso.

Estudos sobre população de rua são raros. O mais recente foi realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2016. Estima-se que exista mais de 100 mil pessoas vivendo nas ruas do Brasil, sendo que 40% delas em grandes cidades e quase 50% no Sudeste. Os dados do Ipea são baseados nos cadastros realizados pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas). A estimativa é que o Suas contemple apenas a metade das pessoas em situação de rua, muito pelo fato de muitos não possuirem documentos.

Ainda que se trate de fenômeno multidimensional e complexo, teoricamente, a pobreza como conceito se relaciona fortemente a situações de privação econômica e exclusão social, o que, por sua vez, são fortemente associadas à probabilidade de a pessoa vivenciar uma situação de rua.

Já o estudo de 2007 “Rua: aprendendo a contar”, realizado pelo antigo Ministério do Desenvolvimento Social (hoje Ministério da Cidadania), foi mais à fundo e traçou o perfil do morador de rua. As mulheres representam 18%, em sua maioria jovens 53% tem entre 18 e 35 anos. Do universo estudado, 48% tem o 1o grau incompleto, 30% já mora na rua há mais de 5 anos, 88,5% dizem não receber qualquer benefício dos órgãos governamentais. O que mais chama a atenção neste estudo são as discriminações sofridas pelas pessoas em situação de rua, sendo que 31,8% diz já ter sido impedida de entrar em estabelecimentos comercias, 31,8% em shoppings centers, 18,4% em hospitais, 26,7% em bancos, 29,8% em transporte público e por fim, 13,4% de tirar documentos.

Precisamos de políticas públicas sim, sérias, efetivas, mas de empatia da população também. Empatia deveria ser uma diretriz de vida, bem como oportunidades equivalentes para todas as pessoas. Ações e atitudes isoladas não mudam um contexto inteiro, mas uma coisa de cada vez talvez deixe o mundo melhor. Sei que este espaço é para falar sobre mulheres e carreira, mas quantas mulheres também não estão nas ruas passando pela mesma situação desse rapaz? Mendigando por comida, sendo humilhadas, sem apoio e oportunidades?

Há uns vinte dias, uma moradora de rua foi agredida por um segurança da rede Pão de Açúcar, na loja da Rua Consolação. Após a repercussão do caso nas redes sociais, o segurança foi afastado do cargo, e a rede Pão de Açúcar propôs à moradora de rua um emprego. A declaração dela foi bastante objetiva: “É disso que eu preciso, preciso de emprego”. E diria, de visibilidade e dignidade.

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Se você se interessou sobre os estudos que comentei no artigo, seguem os links: Rua: aprendendo a contar e Estimativa da população de rua no Brasil.

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Gisela Guarienti
Lean In SP

Publicitária com MBA em Gerenciamento de Projetos, atuo no segmento de tecnologia, amo livros, conhecimento, gatos, gastronomia e viagens!