Sobre primeiras vezes

Ana Lucia Abdulkader
Lean In SP
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3 min readFeb 2, 2021
“Sim, estou te encarando! Faz anos que a ABNT mudou meu padrão.”

Na verdade: sobre primeiras vezes, segundas vezes ou décimas quartas vezes que são como se fossem a primeira. Sobre medo, sobre aquele frio na barriga antes de pular na água!

Há mais de um ano aquele bendito quadro no chão estava me incomodando, me implorando por parafusos na parede: “Vai, gata, só duas furadinhas na parede e está tudo resolvido”.

Havia também muito julgamento no olhar de soslaio das duas prateleirinhas planejadas para o quarto dos meninos mas ainda embaladas dentro do armário.

Cada vez que tinha que escolher se plugava o notebook ou o celular porque a tomada ainda é o do padrão antigo (não compatível com nenhuma das três extensões que tenho), sempre via na tomada um ar de desdém: “Jura que você vai comprar outra extensão em vez de me trocar? Sua molenga!”.

Pois é. Quem sempre fez esses reparos na casa foi meu ex-marido e parecia tão fácil! Decisão: chamar a Porto Seguro ou incluir no Bumble pré-requisitos como (a) não quer relacionamento sério e (b) presta serviço de “marido de aluguel”?

Brincadeiras à parte, fiquei pensando cá comigo porque eu — a louca de fazer tudo em casa até o próprio pão, filha da Dra. Regina (que trocava as lâmpadas em casa em vez de esperar o marido engenheiro elétrico fazer) — estava com medo de uma reles furadeira? Decidi que 2020 não acabaria se não resolvesse essa pendência comigo mesma e, inspirada pelos posts da maravilhosa Mari do @agilizalab, resolvi me jogar de cabeça na água fria.

Não, não foi bom de primeira. Problema 1: onde arrumar uma furadeira? Ok, no vizinho. Problema 2: como trocar a broca da furadeira do vizinho que não tem chave de mandril (se você não sabe o que é mandril, leia os posts da Mari, procura no Google, finge que sabe, mas continua lendo)? Comprei a chave. Problema 3: a única broca que o vizinho tem não é a que eu preciso. Comprei a broca. Problema 4: não invente novos problemas! Marca a parede, pega na furadeira, reza, aperta o botão e fura. Gente, o prazer e libertação do furo feito, da bucha colocada, do parafuso parafusado, das prateleiras (mesmo que um pouco tortinhas) instaladas é inenarrável! As mesmas peripécias também se deram com a tal da tomada, mas no final deu tudo certo (tudo bem, só tive coragem porque desliguei a chave geral).

A questão é: por que passei um ano com o quadro no chão? O que esse tipo de medo diz sobre nós, mulheres? Sobre nossa cultura que desestimula o erro em geral: “Cuidado, não sobe na árvore que você pode cair!”. Sério? Por que a gente não é mais cara de pau? Por que a gente espera atender 110% dos requisitos para se candidatar a uma vaga enquanto um homem normalmente se candidata cumprindo 70% e ainda passa (tá certo ele!).

A gente aprende no erro e ficamos nos privando do nosso próprio desenvolvimento com tanta cautela. A verdade é que a próxima prateleira não estará torta (até porque pretendo fazer o curso da Mari!). Só vencemos o medo de falar em público ao fazer justamente isso, falar em público. Só temos uma segunda vez quando já houve uma primeira. E às vezes podemos precisar de muitas primeiras vezes, de muitas mudanças de contexto e de voltar muitas casinhas no jogo.

No curso que fiz no Instituto Amani, aprendi algo que me marcou muito: a gente só se desenvolve quando estamos na nossa stretch zone. E o louco é que, quando trabalhamos nessa stretch zone, aos poucos ela vira uma zona de conforto, então na prática a gente se expande. Expande nossa musculatura emocional, nossa capacidade de lidar com imprevistos, nosso conhecimento de nós mesmas. É desconfortável, mas só tem vantagens. O segredo é controlar o nível de emoção para não entrar na zona de pânico.

Dito isto, entendi que não tem jeito: vou ter que viver a vida inteira com um pouco de frio na barriga. Fecho me desejando um 2021 cheio de medos bons, medos que eu possa controlar, medos que não me paralisem.

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Ana Lucia Abdulkader
Lean In SP

Practical mother, despite trying to stay in-tune with the Payments and Fintech Sectors in Brazil, still cultivates appreciation of beauty and moments of pause.