A moça que engolia palavras
A Coruja-das-Torres tem penas que deslizam no ar, permitindo que seu voo seja um dos mais silenciosos.
― Quando eu era pequena, não tive amor de pai, nem de mãe. Passei a infância desviando das garrafas de vidro que minha mãe e meu padrasto jogavam pela sala.
Eu queria poder contar o que o silêncio causou. Mas Sônia engolia palavras, por mais que não soubesse como digerir nem as sílabas. Falar de si era como imprimir sua marca no mundo, e ela não parecia querer. Mentira, ela não queria mesmo. As palavras eram quase obrigadas, mas mesmo se faltavam diziam coisa demais.
Molha o pano na água, esfrega o pano no chão.
Pano na água, pano no chão.
O consultório branco abafava a presença dos flocos de poeira. Ali, ela já era parte do ambiente.
Puxa o rodo com força.
Solta o pano no balde.
Esfrega até que cansa.
Puxa o rodo com força, de novo e de novo, como que pra apagar o passado.
Sônia e o pano eram barulho e silêncio. Um e outro, ao mesmo tempo.
O tilintar dos saltos das senhoras que ali passavam abafavam o som dos pingos d’água. Ela não sabia o que sentia de verdade naquele lugar. E às vezes nem tinha tempo de sentir.
Esfrega, limpa, torce o pano. Quem sabe a mancha some do chão, do móvel, de si própria.
As pessoas desfilavam correndo com seus papéis de exame e suas histórias de vida. E ela suspirava ao duvidar se sua dor cabia em palavras.
Era melhor fazer tudo rápido. O atrito do rodo no chão de cerâmica a fazia lembrar de sua mãe.
― Limpa rápido e bem limpo. É isso que nascemos para fazer. Quanto mais cômodos, melhor.
Entre os suspiros criados pelo espaço entre o pano e a água, Sônia acabava lembrando do filho. Bernardo tinha 8 anos e perguntas demais. A cada dia que se passava naquela semana, mais perto chegava o sábado, dia de visitar o filho na casa de sua tia. Foi mãe aos 27, não aos 17. Ouviu dizer que foi sorte. Pra ela, isso tinha outro nome.
Já é outro dia. Troca de pano. Passa a vassoura, tira o pó, varre de novo. Pano na água, pano no chão. Desinfetante. Pano na estante, na mesa, no escaninho da sala de espera.
terça,
quarta,
quinta…
sexta.
Era o último dia da semana que ela limpava o consultório.
Sábado.
Caminhada.
Ônibus.
Casa da tia.
Levou o abraço e os bolinhos de chuva. Dessa vez era só isso que podia entregar. Os olhos do menino eram de agradecimento, mas também de dúvida.
É segunda outra vez. O rodo, o piso, o pano de chão. Ao menos nenhum deles exigia que dela saíssem respostas
Essa história representa todas as mães a quem não pude chegar, mas que encontrei nos corredores do não dito.
Texto: Daniela Matos | Ilustrações: Felipe Duarte
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