Flor de rua

Dani Matos
Ninhos
Published in
8 min readOct 31, 2019

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O Falcão Peregrino, durante a falta de alimento no inverno, é obrigado a migrar e enfrentar oceanos, montanhas e grandes florestas em seu voo.

O que eu mais queria naquela hora era gritar.

Eu já passei por tudo nessa vida, achei que nem sentia mais dor. Mas ter uma cabeça gigante saindo de dentro de você dói mais do que cara passada do chapisco.

― Força Rosa! Mas não grita. Senão vai dar BO pra nós!

Vai se fuder Carla! Eu não tenho nem mais braço pra morder nessa desgraça.

Lembra lá daquela história do dia que você veio pra cá. Do que o pastor falou.

E naquela hora, me lembrei. Ele segurava o microfone e gritava como nunca

“Firma suas mãos cansadas e seus joelhos enfraquecidos. Acerta esses passos.”

Eu tava ali concentrada na dor e naquele inferno de criança que não saía de jeito nenhum. Mas a Carla me fez lembrar tudinho do que eu passei pra chegar ali. A vadiazinha que foi expulsa de casa pela mãe e foi ter filho na rua. A única coisa que fica vindo na minha cabeça igual uma radiola nas lembrança daquele dia é o que escutei passando na porta da igreja. O pastor falava:

“Deus só corrige quem ele ama e só castiga quem ele aceita como filho.”

A única coisa que eu pensei naquela hora foi: então tô batizada como filha de Deus mesmo. Sem casa,sem nada. E o homem ainda continuou:

“Firmai as mãos cansadas e os joelhos enfraquecidos. Acertem esses passos, antes que fiquem mancos”.

Manca eu tava de tanto andar. Quem acha que a rua é pública é porque nunca morou nela. Achar um canto pra ficar foi mais difícil do que lembrar da cara lavada da mulher que me expulsou da minha casa por estar de bucho cheio. Custei a achar a galera do viaduto. Eles foram diferentes. Me estranharam no início, quiseram saber qualé que era, mas aí me deixaram ficar por ali. Eles são o que tenho. Tão comigo pro que der e vier.

― AAAAAAI!!!

― Cala a boca, Rosa. Eu já te avisei. Cê tá surda? Eu tive criança igual você e não fiquei berrando que nem um bezerro. Cai na realidade! Cê num tá no hospital, não. Vai chamar a atenção de quem não deve. Essa criança não vai sair nunca?

― Tá bom. Vou firmar a merda desse joelho e vamo ve se agora vai.

Eu suei frio. Mas a criança saiu. Carla jogou um pouco da água da bacia pra tirar o sangue e aí eu vi. Era menina. Mais uma mulher nesse mundo. Taí, vai chamar Maria. Foi mãe do filho de Deus, sofreu que nem condenada mas hoje é respeitada por todo mundo.

― Ela é forte, viu Rosa? Acho que vai puxar sua braveza.

― É pra puxar mesmo. Quero ela com mais sangue nos zói ainda.

A menina só sabia chorar. Parece que já sabia que a vida não ia ser fácil desde ali. Enfiei ela no meu peito pra ver se adiantava. Marcão tava batendo o pé de tanto nervoso. Pois o homem era doidinho, ficava andando com aquele chapéu velho pra lá e pra cá.

― Chega mais Marcão, para de tampar esse olho pra não ver sangue. Até parece que já não viu coisa pior aqui!

― Ó, mas até que é bonitinha, parece um urubuzinho.

― Quem cê pensa que é pra chamar minha filha de urubu?

― Mais bobo que eu tá o Zeca e o Juvenal. Ah lá os dois com medo de chegar perto.

― Para de bobeira gente! O pior já passou. E a Maria agora é das nossas. E ai de vocês se não me ajudarem a achar comida pra fazer essa menina crescer. Eu que não vou pedir com criança debaixo do braço.

― Rosa, cê acabou de se esbagaçar toda. Fica de boa aí antes de pegar no nosso pé de novo.

Enrolei a bichinha na coberta e fiquei com ela debaixo da cabana. No outro dia ia dar um jeito da gente tomar um banho e quem sabe achar algo pra comer.

Os outros dias não foram moleza nada. A vida toda escutei que mulher que paria de parto natural saia pronta pra outra. Só se eu tô fora dessa conta. Não aguentei fazer nada, e se tem uma coisa que eu odeio é depender dos outros. A Maria pelo menos só precisava de leite e de um canto pra dormir.

Quem deu duro mesmo para me ajudar a dar conforto pra ela foi a Carla. Ela sabia que não era fácil. Teve a Alice no meio do pessoal daqui e deu no que deu. Precisou de ajuda, mas os três homem junto não davam um e acabou que a polícia tomou a menina dela. Mas isso não vai acontecer com a Maria não. Ou eu não me chamo Rosa.

Sei nem o que fazer com Carla. Não sei como, ela me apareceu até com fralda pra menina. E com a pouca comida que arrumou eu até consegui dar leite. A gente se virava todo mundo junto, mas nós duas era igual irmã.

Eu nem lembro direito da cara das minhas irmã de sangue. Mas dizem que irmão briga até, né? Pois eu e Carla era assim. Unha e carne, mas discutia o tempo todo. Se ela inventava de pedir comida pros outro eu brigava. Se queria ir pra muito longe, também brigava. Ainda mais quando inventava de tentar pegar uma parte da comida de gente desconhecida. Nunca vi gostar tanto de uma confusão. Mas quando nós concordava era tiro certo. Nunca tive medo de nada quando era nós duas, mesmo na noite. Agora com criança não ia ser diferente.

A Maria como qualquer neném só mamava e dormia. Chorava só se tivesse saindo pouco leite ou se fazia xixi. Acabei achando uma dessas casa de apoio no bairro ao lado que me ajudava pra ela pelo menos ficar limpinha.

A semana tava indo bem. Os meninos tavam conseguindo pegar uns bico e a Carla tava ajudando uma moça do outro quarteirão a recolher os resto de obra, o que deu uma grana pra semana toda. A noite não tava tão fria, então tava me virando bem na nossa cabana. Mas quando tá bom demais pode esperar. E eu não tava esperando mas já vi que a treta tava chegando. Um cara nojento do beco do Juvenal começou a andar na direção da nossa casa. Esse cara já apareceu aqui outras vezes, sempre caçando confusão.

― Marcão! Juvenal! Corre aqui.

― Que foi Rosa? Uma hora dessas.

― Olha quem tá vindo ali. Eu não quero confusão aqui não. Vai acabar acordando a menina.

― Num é possível. Esse cara de novo?

― Eu já to avisando, se mexer com a minha filha cês vão ver.

O cara foi chegando mais perto. E pelo jeito, os dois não tinham muito o que fazer nessa hora.

― E aí pessoal. Qual a boa?

― Tem boa não rapaz. Tamo aqui na tranquilidade.

― Então, eu quero saber de dinheiro. Não sei se você sabe Marcão, mas cê tá ocupando a minha área. E quem ocupa a minha área me deve.

― Que área o que? A rua não é só sua não. Eu olho os carro do quarteirão já tem semanas.

― Olhava. Porque o ponto é meu. No quarteirão de cima agora não pode mais parar. Então agora o debaixo é meu.

― Ô cara, não caça confusão aqui não. Tamo com uma criança aí dormindo. Deixa a gente na paz.

― Eu deixo, se você pagar a grana que ganhou nessa semana no meu ponto.

― Eu não tenho com o que pagar não.

Foi nessa hora que eu vi que esse cara não ia largar o osso fácil. Mas eu não sou de aceitar outro galo cantando no meu terreiro, não. Saí logo da cabana escondendo a faca que guardava pra me proteger nessas hora.

― Vaza daqui! Não tá vendo que a gente não tem nada pra você?

É claro que a Carla entendeu que eu não tava ali pra brincadeira.

― Rosa, pelo amor de Deus, para.

― Não vou parar não. Esse cara tá achando que é quem? O rei da rua? Some da minha frente ou você vai ver.

― Vou ver o que patroa? Que que ce vai fazer?

Não pensei duas vezes. Na verdade, até pensei, porque poderia ter feito algo pior. Empurrei o cara pro meio da rua. Como ele tava tonto, cambaleou e caiu. Eu fiz ele virar o próprio cão. Ele pegou impulso pra se voltar contra mim, mas o Marcão entrou na frente.

― Deixa ele vir Marcão, fui eu que aticei ele!

― Rosa, você não sabe o que tá falando.

O cara voou na gente, deu um soco no Marcão. E eu vi que não ia ter jeito.

Peguei a faca e apontei pra ele.

― Some daqui ou eu acabo com a sua vida. Eu to avisando. Tô te dando a chance.

― Cê acha que me assusta com a sua faquinha? Eu já falei que vim buscar o que é meu.

― Tira a mão da minha família, eu já falei que o ponto é de quem chega primeiro e nem pra isso você prestou.

Eu tava tão nervosa que não percebi que a gente tava gritando. E gritar, naquela hora, era correr perigo. E foi aí que aconteceu o que eu menos esperava. A sirene começou a soar lá embaixo. Eles iam subir.

Rosa, esse cara vai sumir logo. Mas cê precisa fazer alguma coisa. Cê vai acabar perdendo a Maria igual eu perdi o meu filho. Não deixa isso acontecer.

Eu sabia que a polícia ia subir. Ia querer saber o que aconteceu e se eles vissem a criança, ia dar merda.

Saí correndo, fui até a cabine e peguei a Maria. Enrolei ela no cobertor e coloquei numa caixa. Pedi ajuda pro Juvenal enquanto o Marcão enfrentava o cara com a Carla e subi o pouco que deu no muro. Joguei a caixa lá. Eu só consegui pedir pra Deus não deixar que acontecesse nada com a minha menina.

Fica quietinha Maria. A mãe já te busca.

As lágrimas desceram. A polícia chegou. A gritaria voltou mas eu já não ouvia nada.

O cara contou que ameacei ele com a faca. A Carla tentou mentir, falando que era ela que tinha feito isso. Enquanto a polícia falava, nada vinha na minha cabeça além da minha filha.

Naquela hora entendi tudo. Ninguém me ensinou a ser mãe. Mas quando falavam que era padecer no paraíso eu não entendia. Eu tava padecendo, só que do outro lado.

Para todas as mães que têm o teto estrelado

Texto: Daniela Matos | Ilustrações: Felipe Duarte

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