Matheus faz 1 ano
Os casais de Caneleiros-de-Chapéu-Preto vivem uma vida de cooperação, se ajudando na construção do ninho e alimentação dos filhotes.
Miguel acordou pela primeira vez em muito tempo com os raios de sol. Abriu os olhos, se esticou na cama e, num suspiro, sentiu as mesmas coisas que o acompanhavam até ali: medo e culpa.
Levantou-se aos poucos para que Cristina pudesse descansar por mais tempo. Com passos leves e quase sem respirar, abriu a porta do quarto de Matheus. O menino estava ali, deitado, observando o teto do quarto que era repleto de estrelas. Os dois se olharam. Miguel entrou e ficou ao lado do berço. Passou as mãos nos cabelos do menino antes de pegá-lo no colo. Suspirou. Estava tudo bem. Desta vez estava tudo bem.
O encontro dos olhares dos dois o transportou direto para as lembranças daquele mesmo dia, um ano atrás. Com poucos toques no telefone, Miguel abriu uma conversa no WhatsApp que estava parada há tempos. Ao decidir ler a primeira mensagem, imergiu em um mundo de lembranças.
HÁ 1 ANO
05h20: O Matheus vai nascer. Ele vai nascer agora.
05h21: Como ele deve ser? Será q deve saber quem sou?
05h21: Eu n consigo pensar em nada vendo minha esposa sentir toda essa dor.
05h21: Eu n sei se é verdade isso de que criança lembra da voz do pai.
05h22: Não sou eu que carrego ele esse tempo todo.
05h22: Eu sou um inútil mesmo.
06h49: A Cristina não para de sentir dor e nada, nada daquele grupo de parto que eu tentei aprender funciona
06h49: E ninguém dessa merda de hospital parece saber resolver isso
06h50: Meu Deus, me ajuda a tranquilizar minha esposa
09h18: Nasceu
09h18: Eu n sei dizer nada do que aconteceu
09h20: Mas vou deixar aqui pra lembrar
09h20: Ele me olhou, e muito
09h21: Acho que deve lembrar de mim
09h21: Eu n sei carregar essa criança, tenho medo de acontecer alguma coisa e aí eu n vou me perdoar
29/08/2018
17h34: Deixei a fralda por muito tempo
17h34: O menino tá vermelho, machucado
17h35: Preciso levar no médico
30/10/2018
07h05: É a criança mais linda do mundo inteiro
07h06: O sorriso dele me faz ter menos medo de n saber o que eu to fazendo
13/11/2018
18h57: A água do banho tava quente demais
18h57: Eu quase queimei o meu filho
18h58: PQP!
18h58: Como pude ser tão idiota
18h58: Eu li tudo, estudei e ainda consegui quase queimar o meu filho
27/11/2018
23h12: Ele só chora e eu preciso chorar também
23h13: Só queria saber fazer tudo direito e não ser esse fracote
03/12/2018
07h43: Como a Cris sabe cuidar dele tão bem?
07h44: Sei lá, a gente estudou junto, preparou tudo mas eu pareço não saber nada
07h44: Meu colo nunca é a escolha dele
09/12/2018
03h47: Eu só queria poder dormir
03h48: Eu sei que não tá fácil pra Cris também e é por isso que to deixando isso aqui.
26/12/2018
13h21: Brincamos juntos pela primeira vez e nenhum desastre aconteceu
13h21: De vez em quando as coisas dão certo
09/12/2018
20h51: Eu to exausto
20h51: A Cris n consegue nem falar
20h52: Eu n sei se faço algo na casa ou cuido do meu filho, ou os dois ao mesmo tempo
20h52: Isso não tem em nenhum manual
30/01/2019
09h17: Hoje foi o pior dia da minha vida
09h17: O Matheus precisou tomar vacina
09h18: E claro que quem deve segurar e dar força é o pai
09h18: Mas ele me olhava pedindo socorro e chorava enquanto tomava as agulhadas
09h19: Eu só queria que as agulhadas fossem no meu braço, só isso
09h19: Ver uma criança desse tamanho passando por isso..
09h20: To chorando pela dor dele.
10/07/2019
01h09: O Matheus engatinhou! Do nada!
01h10: De madrugada e ainda pela sala
01h10: N sabia que essas coisas aconteciam sem nenhum sinal
01h10: Eu e a Cris tomamos um susto
25/07/2019
19h24: Ele tá andando!
19h24: TÁ ANDANDO!
19h25: Eu n sei o que fazer agora
19h25: Ele pode pegar coisas, já ta comendo e sei lá
19h26: Ele andou
O Miguel dono daquela voz já não existia mais. Ele não conseguia mais se reconhecer. Rolou a mensagem. As fotos do menino em suas diferentes fases fizeram escorrer uma lágrima de seu olho. Largou o celular, colocou a criança no carrinho e enquanto preparava o café, olhou para o menino e para a sala vazia. Sua cabeça era como um álbum vivo das lembranças que o levaram até ali.
Cristina acordou e observou o marido e o filho, juntos ali. Foi até a geladeira e pegou o bolo que tinha encomendado no dia anterior. Ao acender as velas, buscou Miguel e eles levaram Matheus até a sala. Depois de cantar parabéns, Miguel soprou as velas com todo o ar que tinha guardado em seus pulmões.
Não era só o primeiro do ano do filho que estava ali representado, mas também o primeiro ano em que aprendeu a ser pai.
Abraçou a esposa, suspirou e gritou quase que sem querer:
― A gente conseguiu! A gente conseguiu chegar até aqui.
Pegou o telefone, fotografou a criança que sorria para os dois. Voltou ao grupo e deixou uma última mensagem:
já faz 1 ano com Matheus e sem você, pai.
Essa história representa todas as lágrimas escondidas de um pai.
Texto: Daniela Matos | Ilustrações: Felipe Duarte
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