O homem sem face

Dani Matos
Ninhos
Published in
4 min readOct 31, 2019

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Antigamente, as mães escandinavas costumavam dizer que era a dócil e protetora Cegonha quem trazia os bebês

O laboratório branco se misturava à angústia de Joana. Com os pés agitados, ela aguardava na sala de espera, sentada entre dois rapazes desconhecidos. A revista em suas mãos era apenas uma forma de tentar alguma distração. Ela deslizava o dedo pelas páginas de anúncios como quem desliza pelos cabides de um guarda-roupa, mas as palavras fugiam de seus olhos. Joana não era a única da sala que tinha a ansiedade escorrendo pelo corpo.

Uma mulher de jaleco branco chamou seu nome e ela caminhou até a sala do fundo ainda sem saber o que sentia. A sala era solitária. Sentou-se de frente para a mulher e estendeu o dedo para que dele fosse retirada uma gota de sangue.

A gota formada de vermelho vivo respingou como a lágrima que desceu dos olhos de Joana. Esperança. Voltou para a cadeira de cores sem vida. Agora estava sozinha. Restaram apenas ela e o corredor.

Do lado de fora da clínica, o sol brilhava. Era dia de sábado e ela estava liberada para sair. A espera não cabia somente no corredor estreito, mas também nas próximas duas semanas. Por algum motivo, quis permanecer por um tempo. Seus olhos tentavam por minutos se encontrar com os olhos dos homens que passavam apressados. Era em vão. Ela não tinha certeza sobre quem devia procurar.

Decidiu seguir em frente. A cabeça parecia se perder em um rio de lembranças. Andava pelo centro da cidade assumindo seu anonimato. O moço sorridente da banca de revista, o pintor do prédio da esquina e até o motoqueiro que passou em câmera lenta carregavam consigo algumas suspeitas. Joana olhava para o céu como quem buscava uma resposta. Mas era tudo vazio. O homem que procurava não tinha face.

A sala de casa revirada era um álbum vivo de lembranças. Ela tinha espalhado as fotos de infância em busca de algum sinal. Os rabiscos festivos a transportaram diretamente para a imagem do seu pai lendo histórias ao lado da cama, enquanto ela criava com cores os próprios universos. A medalha de natação era a conquista dos dias em que nadaram juntos semanas antes das competições. Na piscina, ele, que era grande e forte não cansava de lembrá-la o quanto ela já era campeã. A foto do seu aniversário de 5 anos a lembrara do quanto seu pai fazia todos os seus amigos rirem quando chegava fantasiado na hora do parabéns.

As imagens junto com a coleção dos desenhos da escola eram regadas de ausência e culpa. Seu sorriso estampado no colo da mãe e da vó deveria ser o suficiente. Mas ela insistia em buscar incessantemente a única coisa que lhe faltava: a figura masculina que hora ou outra aparecia em seus desenhos, com rabiscos estampando o rosto desconhecido.

Guardou as lembranças na caixa. Guardou a culpa também. Decidiu tomar banho como se a água pudesse lavar os espaços não preenchidos de sua história. Tirou o vestido florido, se encarou no espelho. De onde vinham aqueles olhos? De quem herdou a marca que tinha no braço? Seu corpo denunciava indícios que não a levavam a lugar algum. Mergulhou em si mesma.

As próximas semanas passaram devagar como os ponteiros do relógio do quarto. Joana recebeu o aviso. Era hora de voltar. O caminho parecia mais longo, o trânsito parecia não andar, e ela carregava a ansiedade guardada nos seus 25 anos de vida.

De novo avistou o corredor cheio, a cadeira sem vida, as pessoas desconhecidas que derramavam angústia. Escutou seu nome. Queria que o momento parasse. Em segundos, pensou como seria sua vida a partir dali.

Andou até a sala, que desta vez era espaçosa. Pairou os olhos no promotor, sentado ao centro e depois no anônimo ao lado. De todas as descrições possíveis, ela nunca tinha imaginado aquela figura para seu pai. Não sabia o que pensar além de decorar cada pedaço daquele rosto. Ficou imaginando como ele ficaria no álbum de seu aniversário de 1 ano e no desenho de família da escola. Olhou nos olhos dos homem, que estava impaciente e desconfiado. Tentou dizer algo, mas a voz estava presa. O homem nem de longe parecia feliz. Os dois respiraram juntos antes de abrir o envelope entregue pelo promotor. A sala se encheu de silêncio e apreensão.

Com o papel que retirou daquele envelope, Joana trocou suas dúvidas por uma certeza: os rabiscos de lápis de cor eram o mais próximo que ela já tinha chegado da face do seu pai.

Para todos os corações cheios. Para todas as fotos vazias.

Texto: Daniela Matos | Ilustrações: Felipe Duarte

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