O menino que escolheu o pai

Dani Matos
Ninhos
Published in
5 min readOct 29, 2019

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Seja sozinho ou em bando, no alto de árvores ou postes, o Bem-te-vi se adapta às circunstâncias que a vida lhe dá

― Acorda João, já são 6 da manhã.

O galo nem bem cantou e o menino já devia estar de pé. Sabia-se que o que ele queria mesmo era dormir até a hora de almoçar, mas tem chance que não se repete. Tinha visita, mais uma vez. Assim como Marcelo e Paulinho. Levantou tão lento que tive que dar um susto:

― Quer ficar velho aqui, rapaz?

Foi pro banho. Os outros dois já estavam mais que prontos. Ajeitaram o cabelo com um pouco de gel e passaram o pente como se não houvesse atrito entre os dentes e a cabeça. Colocaram calça e as melhores camisas, até pareceu que estavam prontos para um festejo. Sentaram na cama, só esperando a sirene do café.

Mas João estava que nem lesma. Ele não era a criança que me dava mais trabalho, mas com certeza era a mais sapeca daquela idade. Demorou pra tomar banho, escolheu uma roupa comum e passou o pente no cabelo com um desleixo que dava desgosto. Não estava animado como das outras vezes. Ficou me olhando como quem queria desistir. Eu tentei manter a pose.

― Tia, tem problema se eu for de sandália?

Como é que pode? Nem um calçado fechado o menino quis pôr. Calçou os chinelos de couro surrados que usava para brincar e riu como se estivesse com a roupa mais bonita do mundo. Nem tive coragem de insistir e brigar.

A sirene soou e esse foi o sinal para ir até a mesa de café. Os três se sentaram juntos para cochichar sobre as expectativas. Para Paulinho, ia aparecer uma moça sozinha, bem alta, com cabelos longos e cara de felicidade. Marcelo achava que vinha um casal esquisito, daqueles que não combinam nada: uma pessoa grande, outra pequena. Uma gorda, a outra magra. Mas João nem quis entrar na brincadeira. Estava fazendo aviãozinho com o biscoito Maria e com a cabeça em outro mundo enquanto tomava o seu leite. João não estava preocupado com quem viria. Como pode caber tanto vento numa cabeça só?

Mal terminaram o café e a campainha tocou. Um olhou pro outro. Era esse o momento.

A irmã foi recebê-los. Entrou um homem de camisa branca, daquelas roupas sociais, com calça preta desse estilo também. Ele tinha cara de meia idade por causa da barba bem aparada e dos óculos. Quem segurava sua mão era um outro homem, que, bem, parecia mais velho. Ele era o oposto. Tinha uma barbicha e uma careca que brilhava mais que espelho com luz. Usava uma blusa florida e uma bermuda quase sem cor. Parece que Marcelo tinha acertado, aquele casal não combinava nem nas roupas.

Os meninos começaram a conversar, menos o João. Ele ficou paradinho, olhando pros dois de cima abaixo. Eu conheço esse olhar. Ele acontece toda vez que vem casal de visita. João parece querer escanear a alma das pessoas para escolher como vai se mostrar. E essa parte era o meu medo.

O casal chegou perto dos meninos e eles se levantaram, quase que formando uma fila. Pareciam estátua em museu. Marcelo deu uma acenada tímida. Paulinho sorriu para os dois. João apenas soltou:

― Por que o senhor é careca?

Eu avisei.

Sabia que conhecia aquele olhar. Fiquei até vermelha, mas antes mesmo de pensar em alguma solução o moço explicou:

― Quando eu era pequeno, usava por muito tempo um mesmo chapéu. Acho que cresci com o formato dele na cabeça, e sem cabelo.

O menino deu uma gargalhada como eu não via há tempos. Depois saiu correndo e foi pro pátio brincar, ignorando a presença dos convidados dali. O casal foi então conversar com Paulinho e Marcelo. Perguntaram as idades, o que gostavam de fazer, quais eram os sonhos e até os brinquedos favoritos. Enquanto isso, João se pendurava nas árvores, corria pelo quintal e brincava com outros colegas. Acho que ele tinha cansado de tentar desenhar seu próprio destino.

Depois que a irmã Dulce os levou para conhecer toda a nossa casa, os dois decidiram que era hora de ir. Despediram-se dos dois meninos na sala e me pediram para levá-los até o João, que tinha escapulido mais cedo. Ao chegar no quintal, João os viu de longe e correu como nunca. Ele estava inexplicavelmente diferente. Colocou os pés ao lado dos pés do segundo homem, o qual já tinha indagado sobre a falta de cabelos. Eu fiquei com medo do que o menino iria aprontar.

― Sua sandália é igual a minha. É a melhor para brincar. Você também gosta?

O moço olhou para seu esposo, e depois para o menino. Agachou e pegou as mãos de João.

― É a minha favorita para brincar. Mas não deixe ele saber.

O menino e o homem caíram na gargalhada.

Naquela hora tudo fez sentido. O menino tinha escolhido seu pai. E eu nunca imaginei que a resposta mágica para todos os anos de espera estivesse em sua velha sandália de couro curtido.

Para todas as famílias que se constroem das escolhas guiadas pelo afeto.

Texto: Daniela Matos | Ilustrações: Felipe Duarte

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