Tininha

Felipe Duarte
Ninhos
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9 min readOct 29, 2019

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O Beija-Flor tem um coração que representa cerca de 20% do peso de seu corpo

Era difícil passar na rua com a minha mãe sem parar pra conversar com alguém. Todo mundo conhecia a Dona Eli e a sua cachorra, que saíam pra vender pamonha na rua. A criançada adorava a Tininha, e a minha mãe mais ainda. As duas eram tão grudadas que era até engraçado de ver. A vida não era fácil não, mas com a minha mãe nunca tinha tempo ruim. Eu ia pra loja vender roupa, a minha mãe fazia pamonha, a Tininha fazia graça pro povo comprar e assim a gente ia levando.

A minha mãe não reclamava de nada nunca, até que uma vez começou com uma dorzinha na barriga, na cintura, sei lá. De vez em quando aparecia de novo, e ela acabava nem indo pra rua vender por causa da dorzinha. Assim foi indo até que um dia ela acordou falando que tava doendo demais. Como sabia que a minha mãe não fazia graça por pouca coisa, coloquei ela na moto e levei pro Pronto Socorro. Ela morria de medo da minha moto, então se ela quis que eu levasse pro hospital era porque tava com dor mesmo. Pedi pra tia Jaci, que morava ali por perto do médico, ficar com ela e fui pra loja.

Depois que cheguei em casa, coloquei a moto no rancho e encontrei minha mãe, como sempre, vendo TV no sofá com a Tininha. Perguntei o que o médico tinha falado

― Ah, é problema no útero.

Perguntei que problema era, se tinha que correr atrás de algum remédio.

― Ah não, tem que ir lá tomar na veia.

Quando ela falou que problema era câncer, não perguntei mais nada.

Eu fiquei assustada com o problema, mas mais ainda com o jeito que ela reagia. Só faltava ela dar risada e voltar a assistir televisão com a Tininha no colo, como se fosse só uma gripezinha. Tirando a risada, foi exatamente isso que ela fez.

Toda semana acordava cedinho e colocava a Dona Eli na garupa da moto, pra ir fazer a quimio. Na hora de trancar a casa era sempre uma choradeira sem fim daquela cachorra. Menina do céu. A cachorra chorava, acordava a minha filha que também chorava e eu, carregando a minha mãe pra baixo e pra cima pra fazer a quimio, não sabia se chorava com a cachorra, com a menina ou pela minha mãe. Já que com ela não dava pra chorar, porque a mulher sempre era só alegria. Dava até raiva.

Depois de um tempo correndo pra baixo e pra cima e nada da dor melhorar, o médico falou que era melhor internar ela de uma vez. Ah minha filha, daí não tinha escapatória mesmo. Chorei sozinha, com a menina, com a cachorra e com quem mais aparecesse pra chorar junto.

― Alô, Suelen? Não precisa nem me responder, é só me escutar, tá bom? A mãe vai ser internada.

Os meus irmãos tinham tanto ranço de mim que só resolveram parar de picuinha quando a nossa mãe ficou de cama. Eu sei que eu não era nenhuma santa também, que eu tomava uma cervejinha aqui e outra ali, mas graças a Deus eu nunca fiz mal pra ninguém, não. Antes de ficar em casa no meio das garrafas do Juninho e dos trambiques da Suelen, eu preferia era sair pro meu copo sujo mesmo. Até que eu arrumei barriga e tive a minha menina. Dos meus irmãos eu ouvi uma merda atrás da outra, mas da minha mãe mesmo, não teve um xingo.

― Agora cê precisa escolher o que cê quer pra vida, Rita. Pra sua e pra da minha neta.

Ruim eu nunca fui, só era meio torta. Então eu decidi que ia me aproximar de Deus e procurar ser uma pessoa mais ou menos mesmo. Sem passar a perna em ninguém e colocando dinheiro dentro de casa para a minha mãe e a minha menina crescerem sem passar necessidade. E a gente vivia bem assim. Tanto que o Juninho e a Suelen, quando resolviam dar o ar da graça lá em casa, ficavam me medindo do pé a cabeça. Como se eu fosse um bicho.

Mas naquela hora não tinha mais jeito, né? Eu que resolvia tudo da mãe, então eles tinham que ajudar. Eles ficavam com ela no hospital no fim de semana e eu corria. Corria do serviço pro hospital e do hospital pro serviço de segunda a sexta. De vez em quando aparecia uma comadre em casa querendo pamonha, e eu explicava que só ia ter quando a Dona Eli voltasse do hospital. A clientela ficou triste, e cada comadre que aparecia falava que ia colocar o nome da minha mãe nas intenções da missa.

Quem ficou triste também foi a Tininha. Ela nem se importava mais de fazer graça pros outros que iam procurar a minha mãe. Parece que tinha cansado de chorar alto no portão e só ficava quietinha, o dia inteiro. O sofá florido, já desbotado de tão velho, tinha até o formato da cadelinha marcado na almofada onde ela, toda tarde, se deitava do lado da minha mãe para assistir televisão. A Tininha era tão acostumada com a minha mãe que sem ela ficava até desorientada. Ficava deitada ali, quietinha, e de vez em quando parava para olhar a outra almofada do sofá, vazia.

Um dia no hospital, quando fui ver como minha mãe estava e deixar algumas roupas, ela falou que queria porque queria ver a Tininha. Eu disse que não podia entrar com bicho no hospital.

― Olha aqui Rita, eu tô imprestável nessa cama, sem poder nem fazer pamonha. Todo mundo baixa aqui pra me ver, menos a minha caçula. Me promete que você vai trazer ela.

A caçula de sangue era eu, mas mesmo assim prometi né. Se a mãe fala, a gente obedece.

Outro dia peguei a cachorrinha fiquei pensando como é que eu ia levar ela pro hospital. Arranjei uma caixa de papelão no rua, peguei dois cintos do guarda-roupa e amarrei na garupa da moto. A coitada tremia que nem vara verde dentro da caixa, mas ficou paradinha no caminho todo.

O quarto da minha mãe tinha uma janela que dava pra ver a rua, então pedi pro meu irmão, que estava no hospital, levar ela para a janela. Quando cheguei de moto na frente do hospital foi uma gritaria que até Deus ouviu. Meu irmão disse que as enfermeiras foram até o quarto xingar, mas não tinha nada que fizesse a minha mãe parar de chamar a Tininha e a cadelinha de latir e pular. Ela parecia até um canguru de tanto que pulava, alegre. Por mais que nunca tivesse tempo ruim pra Dona Eli, eu acho que nesse dia o tempo dela tava mais limpo ainda.

Acho que mãe sempre sente as coisas, né? Depois que viu a Tininha, minha mãe foi piorando, até que um dia não aguentou mais. Foi embora, num dia de muito Sol. Diz o médico que foi em paz, sem dor. Foi pro céu.

Nem sei direito como é que eu consegui, mas eu dei meu jeito e arrumei o velório. Pedi para arrumarem bem ela, passar uma maquiagem bonita e enfeitar com flores bem coloridas, que ela gostava. Tudo ia bem dentro do possível, até o povo começar a chegar. Fui ficando sem paciência. É aquele parente que você nunca viu na vida enchendo o saco, é tio sem noção contando piada, é gente que nunca teve nem aí se jogando em cima do caixão… Puta merda, viu.

Pelo menos eu tinha a consciência limpa. Eu sei que eu não dava só alegria pra minha mãe não, mas eu cuidei dela quando ela precisava. Então ficava tudo certo, não tinha como voltar no tempo para consertar os meus erros mesmo. A Suelen e o Juninho que surtaram, um mais doido que o outro. Acho que era remorso.

A semana depois do enterro foi de arrumação e de tentar, de todo jeito, animar a Tininha. Bicho parece que também é que nem mãe e sente tudo, credo. Ela não saía daquele bendito sofá, mas ao mesmo tempo parecia que tinha entendido que a mãe não ia voltar. Ficava lá o dia inteirinho deitada com a cara de paisagem, no meio das flores do sofá. Não levantou nem quando o Juninho e a Suelen apareceram lá em casa para a gente arrumar as coisas da minha mãe.

Em cima da cama da minha mãe ia surgindo maquiagem, perfume, roupa de tudo quanto é cor… Foi difícil começar a mexer nas coisas, mas depois que a gente achou um enchimento pra bunda deu até pra rir. As duas espuminhas ficavam escondidas no fundo da gaveta de calcinha.

Depois que a gente separou as coisas pra doar, começou um papo sobre a casa. Foi aí que fechou o tempo. Eu sei que nunca fui nenhuma santa, mas eu morava com a mãe, cuidava da casa desde pequena e ainda tinha uma filha pra criar.

― A gente não tá roubando nada de ninguém não!

― Eu não tô falando isso, Rita, é só que o certo é o certo.

― Vocês já tem a família de vocês e casa própria, e eu não tenho outro lugar. O certo é eu ficar aqui!

A casa nem valia muito dinheiro, era cheia de rachadura e vira e mexe tinha o quintal comido pelo rio que passava lá nos fundos. Mas é aquilo, né. Quando tem dinheiro envolvido, mesmo que seja pouco, é que as pessoas mostram as garrinhas. Mesmo que seja irmão, primo, tia. Parente diz que quer te ver bem, mas no fundo não é bem assim, não.

Mesmo com toda a gritaria que teve, a Tininha continuou quietinha, como sempre. Depois da confusão, o tempo foi passando e ela só descia do sofá pra tomar água e comer. Quando saía, Tininha andava mansinho, trombando nas coisas de vez em quando, e aí voltava de novo pro seu buraco florido do sofá.

Até que um dia deu a louca na cadela. Ela começou a chorar alto, descontrolada, correndo pra lá e pra cá. Parecia um furacão voando pela sala, até que disparou pra rua pela porta dos fundos. Eu, sem entender, fui correndo atrás.

Na rua passava um carrinho de pamonha, com um cheirão de milho, e a Tininha subia o morro atrás dele. Acho que ela pensou que era a minha mãe. Ela sempre ia atrás da minha mãe. Não vou mentir que eu também queria que fosse, mas eu tenho certeza que se fosse a minha mãe ia ter muito mais gente atrás daquele carrinho.

Quando ela chegou no alto do morro e viu a cara do velho que carregava o carrinho, perdeu todo o gás. Parou e foi saindo devagar de perto do carrinho, sem nem olhar pra nada, nem pras crianças que estavam empinando pipa na rua. O que não entendi era o porquê dela continuar subindo o morro, andando em ziguezague. Saí correndo.

― Tininha! Volta aqui, menina! Tininha!

Quando cheguei no topo do morro vi ela atravessando a rua. Só deu tempo de fechar o olho. Quando abri de novo, vi de lá do alto o tempo aberto, com o sol se pondo bem laranja entre os fios dos poste. A Tininha também tinha ido pro céu.

Esta história é o desenho que não consegui entregar à Vó Ilka.

Texto e ilustrações por Felipe Duarte

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Felipe Duarte
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