Tio

Felipe Duarte
Ninhos
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10 min readOct 29, 2019

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Apesar de ser desajeitado em terra firme, o Pelicano-Pardo se mostra um pescador nato ao entrar na água.

Desde quando montei a loja, as sextas-feiras sempre eram de maior movimento. As pessoas apareciam no fim do dia para comprar anzóis, iscas artificiais ou buscar algum equipamento que deixaram para conserto. Filho de pescador que sou, eu poderia falar sobre as diferenças entre cada tipo de vara por horas a fio com os clientes, certo de que logo eles voltariam contando alguma história sobre os peixes que pegaram. É assim que, graças a Deus, a loja tem crescido e dado certo.

Em Caraguatatuba — ou Caraguá, como todos nós daqui chamamos a cidade — o fim de semana para os turistas é de praia, e, pra gente, de pesca. As coisas funcionam desse jeito desde que me entendo por gente, e de acordo com meus pais, também era assim antes de eu nascer, quando meus avós chegaram do Japão. Meu pai sustentava a casa com o dinheiro dos peixes que pescava toda semana e vendia no mercado, e minha mãe cuidava da casa, de mim e do meu irmão. Cresci pescando com meu pai nos dias de maré tranquila e brincando na praia depois da aula, sempre levando broncas da minha mãe por entrar em casa com os pés sujos de areia.

Já eram cinco e meia, e o último cliente saía da loja com uma sacolinha de iscas artificiais para o fim de semana. Depois de fechar o caixa me despedi do Cássio, meu irmão que também trabalhava comigo. Ele iria cobrir a manhã do dia seguinte para que eu tirasse uma folga.

Não tinha nem três meses que Gabriel, meu filho, tinha chegado. Depois de tantas tentativas de engravidar, pressão dos nossos pais por netos e dois anos espera, minha esposa finalmente estava com ele em casa. Desde que a conheci, na época que ela ainda fazia magistério, sabia que Ana amava crianças e que um dia seria uma ótima mãe. Quando chegava em casa depois do expediente e a via com Gabriel, tinha certeza de que eu estava certo. Não é à toa que, depois de toda a documentação, conversas com as assistentes sociais, visitas ao abrigo e passeios com o garoto, conseguimos sua guarda provisória sem problemas com a Vara da Infância.

Ao chegar em casa, deixei meus sapatos no tapete da sala virados para a porta, como minha mãe sempre me lembrava de fazer, e entrei na cozinha. Ana estava na pia cortando legumes e Gabriel sentado na mesa, rabiscando em um caderno. Dei um beijo em Ana.

― Como foi o dia hoje? Melhorou da dor de cabeça?

― Já estou melhor sim, amor. Hoje foi mais tranquilo. — disse, cortando uma cenoura. — E também foi legal, né Gabriel? Ele já terminou toda a lição da escola e ganhou um presente para deixar o caderno mais bonito!

Me sentei ao lado de Gabriel, que estava com uma caixinha de lápis de cor e o caderno da escola aberto sobre a mesa. Ele pintava o desenho de uma menina que ilustrava a sua atividade.

― Que bonita que ela tá ficando, Gabriel! Quem te deu esses lápis novos?

― Ela que me deu os lápis, tio. E tem até cor de pele, ó!

Ele levantou o braço e colocou o lápis que estava usando em cima, mostrando que tinha o mesmo tom moreno da sua pele. Deu até para relevar o ressentimento de ser sempre chamado de tio, enquanto para a Ana o menino já tinha até soltado um “mãe”.

― Que legal! Bom que então amanhã a gente pode pescar porque você já terminou toda a lição.

Combinei com Ana e Gabriel que seria legal irmos pescar no sábado. Nesse período de adaptação do Gabriel, a gente precisava sair um pouco para conversar. Se tem uma coisa que aprendi com o meu pai era que, mesmo com o silêncio, a gente podia conversar sobre muita coisa durante uma pesca. Não que a gente fosse conseguir ficar quieto com o Gabriel, mas a ideia era ter um tempo pra nós três. Um tempo pra família.

Gabriel era um bom menino. É claro que, antes de o conhecermos, eu e Ana imaginávamos uma criança mais quieta e apegada com a gente, mas a tagarelice do Gabriel nos encantou. Conversamos muito sobre essas expectativas com as assistentes sociais e o grupo de apoio à adoção daqui, enquanto esperávamos na fila do processo. A gente ainda conversa, na verdade, mas na prática é outra história. Às vezes o tanto de energia do garoto me esgotava um pouco, confesso.

A Ana teve um mês de licença da escola quando o Gabriel chegou, então acabou que ela conseguiu se aproximar mais dele. Mas, agora que ela estava trabalhando, cuidando da casa e também do menino, parecia muito cansada. Eu falava em chamar alguém para ajudar com a casa, mas ela sempre insistia em dar conta de tudo. A gente precisava conversar mais, mas com tanta correria, tudo o que a gente conseguia fazer depois de colocá-lo na cama era deitar e dormir.

Como o comércio não parava, eu não tinha tanto tempo assim com o Gabriel. Então eu tentava sempre aproveitar o máximo de quando estava em casa com ele, tentando dar uma ajeitada na nossa relação. Era complicado saber quando eu devia chamar a atenção, se ele sentia que era pro próprio bem dele, ou mesmo se ele gostava de mim. A Ana também repreendia, mas é diferente quando quem fala é o pai — ou como o Gabriel insiste em dizer, o “tio”. Talvez ele não me chame de pai porque, no fundo, eu ainda não seja um. Eu ainda estou aprendendo, e nesse caminho venho lembrado muito do meu pai.

A minha mãe vivia dando umas duras em mim e no Cássio, mas era o Seu Miura chegar do barco e perceber alguma coisa errada que era tiro e queda. A gente ouvia o sermão uma vez só e era aquilo. Não que a gente tivesse medo dele, porque nosso pai era gentil, mas ele sempre dizia que “o caminho certo é sempre o certo”. Era por ele que a gente sempre tinha que trilhar.

Eu tentava mostrar um caminho bom pro Gabriel, mas ao mesmo tempo ele já tinha começado seu próprio há quatro anos. Então eu ia chamando a atenção, mesmo que ele ficasse com raiva de mim.

O sábado amanheceu fresco, com algumas nuvens no céu — o que era ótimo para pescar. Fui com Gabriel até o mercado comprar algumas frutas e camarões para usar de isca. A cada compra acabava parando para conversar com algum conhecido, afinal, desde criança eu costumava andar entre aquelas tendas. Durante as conversas, Gabriel ficava quieto, mas logo se entediava e colocava a mão em tudo: nos abacaxis e até mesmo nos peixes. Quando percebi e estava prestes a puxar o braço dele, vi que o garoto já tinha até dado nome pro peixe. Fiquei com dó, e mesmo não sendo muito chegado ao gosto de Corvina, comprei o Samuel e fomos embora. Depois do almoço juntei as varas de pescar, preparei alguns sanduíches e saímos os três para a pesca.

A praia onde costumava ir pescar desde pequeno ficava a quinze minutos de casa.

― Hoje a maré tá baixa, né Mário? — disse Ana, passando protetor em Gabriel.

Gabriel, ao ouvir o comentário, olhou para o mar.

― O mar tá voltando! A gente precisa fugir!!! — disse, virando-se para Ana.

― Fugir do que, Gabriel?

― Do tsumani! Na escola a tia disse que primeiro o mar fica raso e depois volta pra praia com um tsumani.

Eu e Ana olhamos um para o outro, segurando o riso.

― Calma Gabriel, não vai ter tsunami… É normal o mar voltar um pouquinho, logo logo ele volta ao normal.

― Mas o que a tia Amanda falou do tsunami na aula era mentira?

― Não, mas é que aqui não acontece isso. E se fosse acontecer, a gente ia saber antes! É só maré baixa…

― E sabia que é mais difícil de pescar em maré baixa? — falei, tentando distraí-lo. — Por isso que eu preciso de ajuda pra gente pescar um peixão!

Esquecendo todo o medo de tsumani, Gabriel logo me ajudou a montar as varas e a colocar as iscas. Lançamos os anzóis próximos às pedras de uma pequena ilha próxima da praia e ficamos esperando.

Fazer uma criança esperar não é coisa fácil, especialmente Gabriel. Percebi isso assim que se passaram os primeiros dez minutos. Quando comecei a perder a paciência, Ana apareceu com os lápis de cor e um caderno, me lembrando de como era precavida. Ela pedia um desenho do mar, da vara de pescar, do peixe que iríamos pegar e ele desenhava, sem fazer charme.

Depois de uma hora esperando a vara de Gabriel deu a primeira fisgada. Ele largou os lápis na esteira e corremos até a secretária que apoiava as varas na areia e puxamos juntos a linha.

― Mas ele comeu tudo e foi embora!

― Acontece, Gabriel, acontece. Vamos lá colocar mais isca para tentar de novo.

Quando voltamos até a esteira, Ana estava branca. Não deu nem tempo de perguntar nada: ela se virou, segurando a boca, e vomitou na sacolinha de lixo que levamos.

Depois de um pouco de água para limpar a boca, ela vomitou mais uma vez. Lembrei que alguns dias antes ela já reclamava de dores de cabeça, então achei que seria melhor irmos ao médico. Eu e Gabriel juntamos as varas e chamamos um carro para deixar as coisas em casa. De lá, coloquei os dois no meu carro e dirigi até o pronto atendimento. Ana segurava um saquinho e Gabriel foi atrás, segurando outra sacola. Desde o carro até a sala de espera, ele não desgrudava de Ana.

Depois da triagem, pediram que ela fizesse alguns exames. Depois de esperarmos preocupados, Ana voltou mais corada, o que me aliviou um pouco.

― Como você tá, amor?

― Nossa, muito melhor.

Ela parecia realmente, melhor. Até estranhei o sorriso.

― E o que você tem?

― Bom, eu tenho uma novidade. ― disse, virando-se para Gabriel. ― Vamos ter um irmãozinho!

Eu demorei um pouco para entender o que aquilo significava. Quando percebi, abraçava Ana, que chorava de emoção. Gabriel ficou sentado na cadeira, calado. Percebendo isso, Ana se agachou e olhou para ele.

― Você vai ter alguém pra brincar com você, filho!

Já começava a anoitecer quando saímos do hospital. Eu estava tão feliz com a notícia quanto Ana, mas Gabriel continuava falando pouco. Ele ficou calado, observando a praia que contornava a avenida que levava para casa com atenção.

Depois de organizar as coisas que havia deixado às pressas na sala, fui tomar meu banho. Enquanto imaginava como tudo ia ser daqui pra frente, ouvi Ana falando alto com Gabriel. Não conseguia entender muito bem o motivo, já que ela não parecia brava. Ao sair do banho, a encontrei saindo do quarto de Gabriel.

― Eu já tentei de tudo, Mário, mas ele não quer falar comigo. Não queria nem que eu entrasse!

Então aquilo precisava ser comigo. Coloquei minhas roupas e encontrei sentado em sua cama. Ele estava de pijama, pronto para dormir, mas também vestia as boias de braço que tínhamos comprado há algumas semanas. Ao seu lado, um volume aparecia por debaixo das cobertas.

― O que aconteceu, Gabriel? Por que você colocou as boias? — perguntei, me sentando ao lado dele na cama.

Depois de algum tempo quieto, ele olhou para mim.

― O mar tava mais raso agora de noite. — disse, remexendo no volume debaixo das cobertas.

― Calma, calma… — cheguei mais perto, mais uma vez segurando o riso — Lembra que a gente já conversou que maré baixa é normal? É coisa da natureza, filho…

Ao perceber que eu o observava remexendo o volume para tentar escondê-lo, Gabriel parou.

― O que você tem aí?

Ao puxar os lençóis, me deparei com a sacola de plástico que ele carregou durante o dia no hospital. Nela estavam seus lápis de cor, seu caderno, dois sanduíches que sobraram da pesca e seu álbum de recordações. O álbum tinha fotos e desenhos da época em que ele vivia no lar de crianças para adoção.

Naquele momento eu havia entendido. Realmente, aquilo era comigo, e não com a Ana. Era com o tio Mário.

― Por que você juntou suas coisas?

― É que eu não queria que elas molhassem quando eu fosse embora.

― Você quer ir embora?

Ele ficou quieto.

Explicar para Gabriel que a gravidez da Ana não queria dizer que nós não íamos mais ficar com ele foi mil vezes mais difícil do que convencê-lo de que não iria acontecer nenhum tsunami. Tentei, de todo jeito, dizer que a gente já era, desde antes dele chegar, a família Miura. Então, sem saber exatamente como, consegui fazê-lo tirar as pequenas boias dos braços. Aos poucos, fomos tirando as coisas da sacola: primeiro os sanduíches, depois os lápis com o caderno e então o álbum.

― O que você acha de a gente mudar essas fotos e desenhos para um álbum maior? Aí a gente continua ele.

― E a gente vai tirar fotos também?

― Claro! Quando a gente pegar um peixão, a gente vai tirar uma foto e revelar bem grande, pra nunca esquecer.

― Bom que o meu irmãozinho vai poder ver também, né tio?

― Vai sim. E você também vai pegar com o seu irmão um peixão igual ao da foto!

Depois do alívio de conseguir contornar a situação, vi que Gabriel já estava pronto para pescar com seu irmão há muito tempo. E eu, mesmo que ainda fosse “tio” para ele, começava a me sentir pai pela primeira vez. E, logo mais, pela segunda.

Dedicado a todos os tios e tias que mais aprendem do que ensinam.

Texto e ilustrações por Felipe Duarte

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Felipe Duarte
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