câncer do que não foi dito

Louie Martins
Leminski odiaria
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2 min readMay 10, 2017

nasce. cresce. reproduz, talvez. morre. no meio do caminho, quantas decepções. e alegrias, também, sejamos justos, além de tudo que deixamos de dizer.

acabo de receber alta de um câncer. o câncer e o médico me deram alta; o segundo feliz por ter curado mais um paciente, o primeiro talvez por desistência.

não acredito que ele tenha vindo me matar. pelo contrário. depois da terceira noite chorando compulsivamente por me imaginar careca e vomitando a torto e a direito, percebi que ele veio compensar, na verdade, veio me forçar a colocar qualquer coisa para fora, qualquer honestidade, qualquer dor, qualquer xingamento. mas, lógico, a coisa não funciona assim. ele tinha que metaforizar. o corpo tem dessas, né?, é mais metafórico do que qualquer artista.

o câncer, meu odioso parceiro por mais de 2 anos, me usou como janela para mim mesma, pegou umas células, mudou suas estruturas e colocou-as para se multiplicar sem sentido, sem cor, sem cheiro, como a raiva que guardei daquele dia que descobri tudo que você fez e fingi que nada sabia. meu corpo transformou uma sequência de raiva silenciada ao longo de muitos anos em metástase.

quando percebi o que acontecia dentro de mim, entendi que eu não morreria. não por isso, não por você.

perdi meu cabelo, sobrancelha, um pouco do gosto da comida também, mas, além de tudo, perdi a raiva. e essa, diferentes das outras coisas que eventualmente voltaram, nunca mais morou em mim. hoje fico feliz até quando brigo na fila do mercado, quando sou capaz de me proteger sem silenciar qualquer tipo de angústia.

eu me curei de um câncer, mas, no fim, foi ele quem me curou.

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