mamãe

Louie Martins
Leminski odiaria
Published in
2 min readMay 8, 2017

Veja bem, meu bem, não há mais nada que possamos fazer aqui.

A casa já não tem mais móveis, a janela está quebrada, a luz que entra ali se mistura a poeira e de presente só nos resta a nostalgia.

Noutro tempo, essa sala tinha vida. Lembra? A mamãe brigava com a gente e preocupava que um móvel acabaria por cair na nossa cabeça, mas escalar era sempre muito mais legal do que qualquer perigo. Um dia, sem querer, colocamos fogo no tapete, lembra? Ele ficava bem ali, olha, tem ainda um restinho de marca no chão. Os vizinhos ligaram para mamãe e falaram que a casa estava pegando fogo. Quanto exagero! Mamãe chegou em casa desesperada, achando que encontraria só caveirinhas no lugar. Dali para frente ela nunca mais passou um dia sem nos ligar durante a tarde, preocupação que virou hábito que permaneceu até ela ir embora de nós.

Você já parou para pensar em tudo que o passado constrói para o futuro? As frases que a gente assimila sem perceber, as coisas que a gente acredita sem prova nenhuma, as brigas na noite de natal, os medos. A gente traz um monte de medo com a gente, né? Mamãe era boa nisso, em nos lembrar sempre do poder do medo.

“Não vai viajar sozinha! Vai que você quebra a perna?”, “Como assim demitida? Meus deus do céu, minha filha vai morrer de fome!”, “Não, vocês não vão lá porque lá é perigoso, podem sequestrar vocês”. O plano era fazer a gente ficar aqui para sempre. Com esse tanto de casa, para quê o resto do mundo?

Um tanto que virou vazio que de tanto até sobra.

Você já reparou como nos fazemos de tudo isso que não existe mais? Nossa existência é fruto da memória de coisas que não mais existem.

Às vezes não sei se mamãe viveu bem. Essa casa enorme sempre foi o reino dela e aqui ela depositou, além de nós, todas suas frustrações.

Ela era linda, você não acha? Mas triste, essencialmente triste.

Aprendi demais com ela sobre amor e sobre as coisas que eu nunca deveria fazer. Se entregar demais aos filhos, ao marido e se anular. Silenciar dores para evitar conflitos. Deixar o mundo perfeito para caber todo mundo menos ela mesma, a dona de tudo, de todos os medos, mas nunca de si.

--

--