SimCity 2000. Foto: Cabine do tempo.

Affordances do Trabalho em SimCity 2000

Uma “estética do trabalho” em jogos de simulação

Alexander Carneiro
LENS

--

Em que sentidos jogar pode ser semelhante a trabalhar? Neste texto, busco explorar algumas das relações intrínsecas de jogos de simulação com a atividade de trabalho. Jogo e analiso o clássico jogo de construção SimCity 2000 (1994) e comparo sua interface de jogo, através do conceito de affordances como descrito por William Gaver, com a interface do software Photoshop 2.5 (1992). Photoshop é um software conhecidamente utilizado para trabalho e, portanto, os paralelos encontrados entre sua interface e a interface de SimCity 2000 revelam certas características da proximidade entre as atividades executadas no jogo e atividades tradicionalmente entendidas como trabalho.

Trabalho pervasivo

O trabalho parece ser cada vez mais pervasivo em nossas vidas contemporâneas, se infiltrando até mesmo em nossos mais inocentes momentos de lazer. A cada dia que passa, mais parece que vamos afogar a totalidade de nossos tempos de vida com o ato de produzir. Para aqueles que, como muitos que conheço, sonham com problemas de trabalho, seu último reduto de inconsciência — o sonho — já foi dominado pelos deveres e desafios da produção contínua e infinda.

Em Microsoft Flight Simulator (1995), você trabalha como um piloto de avião. Foto: Gamer-info.com.

Rebecca Saunders, professora de comunicação e mídias digitais, em seu livro Bodies of Work, descreve como o consumo contemporâneo de entretenimento — nomeadamente, o consumo de pornografia em ambientes digitais — necessariamente se categoriza como trabalho. Independentemente das temáticas, mensagens e discursos contidos nos produtos culturais, o próprio ato de consumi-los já se categoriza como uma atividade produtiva e, consequentemente, trabalho. Uma dessas formas de categorização é através dos dispositivos que usamos, os mesmos seja para trabalhar ou para entretenimento. Estamos, quase sempre, gerando dinheiro para alguém. Seja pagando pelo produto com dinheiro, ou com nossos dados pessoais que alimentam os algoritmos, sendo expostos a inúmeras propagandas ou consumindo um produto midiático apenas como descanso no horário de trabalho, nosso tempo de fruição se torna intrinsecamente relacionado a atividades de trabalho.

No universo dos jogos digitais essas relações permanecem. Nick Yee, Thiago Falcão, Ivan Mussa e Jamie Woodcock são apenas alguns dos autores que exploram a relação entre jogos e trabalho. Streamers jogam para trabalhar, sem que sua atividade deixe também de ser jogo. Playtesters oficiais trabalham para jogar, assim como os e-sporters profissionais. Mesmo jogadores “amadores” — o próprio termo um sintoma do ethos de jogos como trabalho — engajam em jogos como se fossem um trabalho, cheio de responsabilidades, metas, otimizações e, principalmente, prazos. Esses prazos são muito bem exemplificados por fenômenos como as daily quests ou as corridas para “world first” em World of Warcraft.

Simulando trabalhos

O conceito de trabalho vai para muito além das práticas de consumo contemporâneas dos jogos digitais. O trabalho também está presente nos jogos enquanto temática, as atividades associadas à produção transformam-se em mecânicas internas de jogo e a fruição advinda do jogar está atrelada à simulação de uma ambientação que, para algumas pessoas, não passa de um dia de trabalho. Jogos de Simulação de Construção e Gerenciamento (do inglês Construction and Management Simulation, ou CMS) são especiais no tocante do trabalho enquanto ambientação. Esse gênero de jogos transforma atividades diretamente relacionadas ao trabalho em entretenimento digital, contextualizando-as em um ambiente onde as consequências são consideravelmente menos graves. Nesse tipo de jogo, jogadores são colocados no papel de chefes/deuses capazes de, com apenas alguns comandos, transformar cidades e terrenos, construir casas, fábricas, castelos, criar linhas de produção, empregar e demitir trabalhadores. Esses são jogos e franquias como Simcity, Cities: Skylines, RollerCoaster Tycoon, Game Dev Tycoon, Zoo Tycoon, Factorio, Prison Architect, Two Point Hospital e muitos outros. Na maioria dos jogos citados, destacam-se as características de gerenciamento de negócios e em todos eles pode ser verificada a filosofia de investimento constante para obtenção de resultados cada vez maiores.

Nesses tipos de jogos, o planejamento, a construção e o gerenciamento são os principais tipos de atividades executadas pelos jogadores. Mesmo antes de começar a jogar, pessoas que engajam nesses jogos podem passar horas pesquisando por estratégias, dicas, truques e modos de otimização de sua experiência de jogo. Devido à característica sandbox dos jogos de simulação, como descrita por Seth Giddings, a diversão consiste em definir seus próprios objetivos dentro do conjunto de possibilidades dado pelo jogo e, em seguida, executar ações para realizá-los. Jogador também se torna em parte responsável por sua própria diversão.

SimCity, enquanto franquia, é a epítome do gênero de jogos CMS. Lançado originalmente em 1989, o primeiro jogo da série foi um sucesso total, recebendo inúmeros prêmios e praticamente inaugurando um gênero. As decisões de design feitas em SimCity Classic acompanhariam os jogos de simulação por muito tempo. Esta análise voltará seus olhos para SimCity 2000 (chamarei apenas de SimCity adiante), segundo jogo da franquia lançado em 1994 e que evoluiu muitos aspectos de seu antecessor, tornando-se ainda mais influente.

As muitas janelas de SimCity 2000. Print do autor.

Ao jogar SimCity, o jogador posiciona-se no papel de prefeito da cidade. Um prefeito em exercício, trabalhando. São oferecidas tabelas, gráficos, mapas e listas para tornar disponíveis as complexas informações necessárias para o gerenciamento da cidade. Todos esses recursos são advindos do universo do trabalho e ajudam a criar uma atmosfera de seriedade, por mais que as consequências aqui não alterem o mundo fora do jogo. Dar comandos para a construção de estradas e indústrias, para a criação de zonas comerciais e para o aumento ou diminuição de impostos é uma tarefa que, fora do jogo, é dedicada a políticos, arquitetos, urbanistas, economistas, advogados e outros. Em suma, são atividades intrínsecas e conectadas a profissões, pertencem ao domínio do trabalho. Em SimCity, porém, elas estão englobadas e traduzidas para o universo do jogo e justamente essas atividades se constituem como as principais ações a serem executadas no decorrer de uma partida. Isso lembra o conceito de metacomunicação do antropólogo Gregory Bateson: É como se fosse trabalho, mas é brincadeira e faz de conta. O faz de conta, no entanto, é justamente fazer parecer um trabalho.

O objetivo principal deste texto, na verdade, não é necessariamente entender as ações diegéticas executadas no jogo e sua relação com o trabalho. O que se busca aqui é analisar o como as ações são executadas e compará-las ao como são executadas em um ambiente digital de trabalho. Em Photoshop 2.5, tanto como em SimCity, as ações são realizadas através da interface. Em ambos os casos, a interface é não diegética, os botões em SimCity não fazem parte da ambientação ou narrativa, eles são abstrações metafóricas que, através de uma interação não diegética, possibilitam ao jogador que execute ações que, por sua vez, são diegéticas e impactam o cenário do jogo. Para entender melhor como essas interfaces nos informam e possibilitam a interação, podemos usar a teoria das affordances.

Interface de trabalho

O conceito de affordances se origina na Psicologia Ecológica e diz respeito a certas propriedades de interação inerentes dos objetos. As características morfológicas apresentadas pelas coisas dão indícios de seus possíveis usos e tornam-se intuitivas para certos grupos de pessoas. William Gaver (1991) diz que:

Em seu aspecto mais fundamental, affordances são propriedades do mundo que tornam possíveis ações para um organismo equipado para agir de certas maneiras.

Utilizar o conceito de affordances para fazer uma análise como esta significa examinar as ações indicadas pela interface do jogo/software através de suas características visuais e perceber como elas interferem e possibilitam as ações do jogador dentro do jogo. Essa metodologia é desenhada por Perani et al. no artigo As Mecânicas do Divertimento (2017).

Ao se deparar com ambos os softwares é possível perceber de imediato a semelhança entre as interfaces: Ambos possuem uma barra de menus superior, com botões que apresentam sub-menus do tipo cascata, uma barra lateral com as principais ferramentas a serem utilizadas e algumas informações, um espaço de trabalho central onde serão feitas as alterações e, por fim, a possibilidade de abrir diferentes janelas ao mesmo tempo contendo diferentes informações. Esse tipo de interface permite um rápido acesso a diferentes ferramentas para aplicação em um objeto principal, sendo possível uma igualmente rápida mudança entre ferramentas. A possibilidade de fixar diferentes janelas na tela viabiliza uma leitura geral da situação, com um acesso a diferentes camadas de informação que não estariam disponíveis apenas na janela principal ao centro.

Usando o Photoshop 2.5 (1993) Foto: Web Design Museum.
Interface em SimCity 2000. Print do autor.

As affordances oferecidas pelos botões da barra lateral de ambos os softwares são também um importante ponto de aproximação entre as interfaces. O desenho dos botões, com a ilusão de uma volumetria, cria a metáfora do apertar, sugerindo aos usuários que os botões podem ser clicados. Uma vez clicados, os botões alteram o formato do cursor, indicando a ativação daquela ferramenta — tal qual um artesão em sua oficina — e a possibilidade de sua aplicação. Isso se encaixa naquilo que William Gaver chamaria de affordance sequencial, em que uma ação causa mudanças que indicam a possibilidade da performance de outra ação, e assim por diante. Em SimCity, ao clicar no botão de criação de ruas, o cursor se transforma no ícone de uma rua e destaca os quadrados no mapa onde elas seriam construídas. Quando o mouse é clicado novamente com o cursor no mapa, a ação diegética é executada e aparecem então as ruas construídas.

Tanto em Photoshop quanto em SimCity, o mouse é o grande possibilitador das operações. Enquanto SimCity não oferece atalhos para além de opções de visualização (zoom in, zoom out, etc), Photoshop é recheado de atalhos para a maioria de suas ferramentas e opções, mas, mesmo com os atalhos, as principais ações são executadas através do mouse. A qualidade metafórica que o mouse e seu cursor na tela indicam em ambos os programas é aquela da precisão, a exatidão de selecionar ou criar um elemento em seu devido lugar, é um símbolo de ordem. Em SimCity, o cursor se transforma em uma mira ou alvo, pronto para centralizar a tela no ponto desejado. Em Photoshop, o cursor pode ser um lápis, pincel ou conta-gotas, instrumentos de igual precisão pontual.

Do ponto de vista da interação física, enquanto Photoshop geralmente é utilizado com uma mão no mouse e outra no teclado, em SimCity, a mão no teclado pode ser temporariamente deixada de lado. A mão no mouse, porém, faz os mesmos tipos de movimento nos dois softwares: 1) move-se até um botão ou menu; 2) clica para selecionar ferramenta; 3) move-se até a janela central; 4) clica para usar a ferramenta e produzir uma mudança.

Talvez a grande diferença na utilização dos dois softwares seja a motivação para as ações que estão sendo praticadas. Photoshop é um programa de manipulação de imagens, as únicas mudanças que acontecem no software são advindas diretamente do usuário. O que pode motivar esse usuário a optar por certas ações varia desde ordens de um superior diretor de criação, em um contexto empregatício, a até preferências estéticas pessoais, em um contexto talvez de hobby ou trabalho autônomo. SimCity, por sua vez, sendo uma simulação, age e reage de acordo com as ações do jogador, que deve igualmente reagir aos outputs fornecidos pelo jogo. Cidadãos podem se rebelar contra os altos níveis de poluição ocasionados pelas indústrias construídas, ou pedir por mais força policial na cidade. O ciclo de interação é continuamente informado pelo universo dinâmico do jogo, que pede ao jogador que execute continuamente mais ações.

Apesar de já ter sido utilizado em contextos de trabalho, planejamento urbano e pesquisas científicas, SimCity, enquanto jogo, não necessita de seriedade externa para se tornar interessante. Ao invés disso, a seriedade é trazida internamente, com a criação de uma atmosfera invocada por uma estética de trabalho, em parte produzida através de sua interface visual, que replica softwares e cria metáforas com áreas de trabalho do mundo externo ao jogo. A diversão provocada por SimCity reside na possibilidade de fazer o jogador desempenhar o papel de diversos trabalhadores dentro de um universo fictício. Já escreveu Huizinga, em 1938, que seriedade não é o oposto do jogo, o oposto do jogo é o desinteresse.

Estética lúdica do trabalho

Ressaltar as similaridades entre interfaces e dispositivos compartilhadas por SimCity 2000 e Photoshop 2.5 mostra como o jogo consegue se aproveitar de uma certa “estética do trabalho”, uma atmosfera de seriedade que envolve sua utilização e reforça sua existência enquanto simulação. Na academia, há certa discussão em relação às simulações e sua classificação ou não enquanto jogo. Fora dela, não há dúvidas de que SimCity 2000 e outros produtos do mesmo gênero são jogos: eles são desenvolvidos, publicizados, vendidos, comprados, utilizados e resenhados enquanto jogos. Os jogos de Construção e Gerenciamento estão longe de ser o único gênero a se aproveitar da estética e atmosfera do trabalho. Simuladores de veículos como EuroTruck Simulator e Train Simulator fazem o mesmo. Os famosos sucessos independentes Papers, Please e Stardew Valley igualmente lhe personalizam como um trabalhador. O recente jogo para realidade virtual Job Simulator é literalmente o que diz seu nome, um simulador de empregos.

Seja um burocrático oficial de fronteira em Papers, Please, (2013). Foto: Steam.

O que pode explicar essa atração por jogos que nos colocam no papel de trabalhadores, quando nossa vida já é cercada por trabalho infindo? O jornalista de jogos Ian Williams parece apontar um caminho promissor para uma resposta: Em um mundo definitivamente pós-industrial, em que a alienação se torna ainda mais radical e, em nossos trabalhos, temos cada vez menos entendimento dos produtos cada vez mais imateriais que criamos, talvez encontremos conforto em assumir o papel de alguém consiga visualizar o resultado um dia de trabalho esforçado, vestir a fantasia glamourizada de um honesto trabalhador manual.

--

--