“No gods or kings. Only Man.”, imagem do jogo Bioshock.

Biopolítica e Cultura Gamer

Tristan Lima
LENS
Published in
7 min readMay 6, 2021

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Live com José Messias | Disponível aqui

O LENS — Laboratório de Pesquisa em Mídia, Entretenimento e Sociedade, recebeu, no dia 20/08, o professor e pesquisador José Messias para uma discussão sobre a biopolítica nos jogos, as diversas facetas da cultura gamer e os cenários de game studies.

A live foi iniciada com uma breve apresentação sobre o convidado José Messias, cuja pesquisa de doutorado se debruça em um aspecto político dos videogames, mais especificamente sobre a relação entre pirataria e games através da intervenções criativas no meio digital. Messias utiliza como base os conceitos de cognição que o entretenimento é capaz de desenvolver em um indivíduo. Dessa forma, é possível perceber como a prática da intervenção afeta o usuário, aprimorando diversos tipos de capacidades cognitivas e mentais.

“Essas atividades que eu fazia ou que o Falcão fazia, como jogadores de baixa renda para poder jogar esses jogos que vem de fora, eram bastante complexas e bem interessantes que de alguma forma afetavam a gente. Um exemplo que não é só dos games, são as pessoas que aprenderam inglês jogando ou vendo uma série. Eu peguei esse tipo de exemplo para construir minha tese a partir da ideia de gambiarra como expressão da política do corpo (no sentido amplo de corpo) que relaciona a pirataria aos games.”

Quem tem acesso aos jogos?

Um dos primeiros pontos a ser discutido na live foi sobre o acesso aos videogames pelas classes médias e populares. O primeiro fator a ser enfrentado é a língua. O português brasileiro ainda é uma das línguas muito pouco traduzidas ou adaptadas nos jogos, o que leva ao jogador em alguns casos precisar entender ao menos o inglês para poder jogar. A maior barreira a ser enfrentada é o preço. Um jogo triple-A ou AAA (títulos lançamento de grande orçamento) atualmente custa mais de R$ 220,00, o que equivale a pouco mais de 1/5 de um salário mínimo.

Um caso recente a ser notado é sobre o port do jogo antes exclusivo da Sony, Horizon Zero Dawn. O jogo foi lançado para Playstation 4 em 2017. Após 3 anos, o jogo foi relançado para plataformas como Steam e Epic Games custando R$ 99,00 e após poucos dias teve seu preço aumentado para R$ 200,00.

Página do jogo Horizon Zero Dawn na plataforma Steam, com a tarja de preço de R$200,00.

“Eu lembro de uma fala de Nelson Zagalo, pesquisador de Portugal, no fim do ano passado: ‘Fim do ano chegando, pelo menos 10 jogos interessantes para se jogar, cada jogo desses custa 40 euros. Ou seja, quem vai ter 400 euros para jogar esses jogos e quem vai ter o tempo para se dedicar a isso?’” (Thiago Falcão)

A dimensão do acesso compete ao estudo da economia do jogo, que tanto Thiago quanto Messias abordam em suas pesquisas, como mencionaram na live. Trata-se de politizar uma discussão sobre técnica, que vê-se necessária entrar neste escopo político por se tratar de um meio massivo consumido que, falando no espectro da economia política, movimenta uma parcela significativa de dinheiro. Todavia, os games são um meio gigante, mas com características de nicho, o que o torna complexo e de difícil compreensão. A partir disto que surge o ímpeto de estudo e pesquisa de um game scholar.

Compreendendo a cultura gamer

Partindo para o ponto principal da live, foi discutido como a cultura gamer se define e é analisada de maneira científica e epistemológica. José Messias começa indicando que a cultura gamer possui várias facetas, ou seja, não se trata de apenas uma cultura, mas de diversas. Além disso, de acordo com Messias, a cultura gamer pode ser entendida como uma ramificação da cultura de intervenção, especialmente porque a cultura gamer é composta de indivíduos que procuram ter, de certa forma, uma maneira de intervir e configurar aspectos do jogo. Isso reflete em uma lógica de intervenção, que por sua vez pode partir para as atitudes políticas de intervenção na própria sociedade, estas podem ser tanto positivas quanto negativas.

“O que eu quero mostrar através dos games e das gambiarras é que o aquilo que a gente faz para poder jogar ou para piratear, esses gestos dos gamers, acabam repercutindo para a sociedade.[…]Então, a lógica da mídia acaba sendo a lógica da sociedade. A cultura gamer tem uma lógica de intervenção assim como a sociedade tem uma lógica de intervenção política.” (José Messias)

Apesar de se tentar entender do que se trata a cultura gamer, ainda não existe um consenso definido sobre ela, afirma Thiago. Muito do que se percebe ainda da cultura gamer é pelo o que outros domínios enxergam o que esta cultura encena, o que por sua vez, não costumam ser encenações positivas. Por isso é muito comum nas redes sociais encontrar comportamentos tóxicos por parte dos jogadores, o que torna o termo “gamer” quase que uma ofensa. Outro fator a se ponderar é que a cultura gamer varia de local para local, possuindo especificidades diferentes dependendo de onde ela é analisada. A exemplo do comportamento brasileiro de piratear e o do norte-centríco de consumir.

“Essa característica de configuração e intervenção dos gamers de forma mais ampla talvez se trate de uma experiência particularmente sul-global dos jogos. Porque, sinceramente, quando penso na experiência que os norte-americanos ou os europeus tem com os videogames, eu penso em experiências neoliberais. Experiências do tipo ‘eu pago e eu consumo’. (Thiago Falcão)

Mesmo que a prática de intervenção dos jogos seja algo comum para o sul-global e ao norte-global, é inegável que os jogos são pensados para o norte-global, especialmente quando tratamos do atendimento e suporte. Thiago cita o exemplo do World of Wacraft, em que se podia jogar tanto em servidores piratas ou nos originais da Blizzard. A grande diferença está no fácil acesso do norte global ao atendimento da própria empresa, enquanto a comunicação do sul-global é dificultada.

Brasonic, um exemplo de romhack de Sonic 3 feita por fãs brasileiros.

Além disso, mesmo existindo uma grande cultura de emulação e apropriação dos jogos impulsionada pelo norte, é no sul-global em que encontramos com tremenda facilidade a capitalização de serviços pirateados como a venda de jogos pirateados ou o desbloqueio de consoles. Enquanto que no norte-global, a apropriação por meio das famosas romhacks ou mods já existia há tempos.

Um fator de muita importância levantado por José Messias neste tópico de experiências é que a pirataria e a gambiarra, que por muitas vezes é uma necessidade frente aos efeitos do neoliberalismo, trata-se de algo global, uma experiência coletiva. O que pode ser útil talvez é como cada local do mundo realiza estas intervenções e o que há de comum entre as diversas culturas.

Os Game Studies e a ruptura do “norte-centríco”

Os estudos dos jogos possuem atualmente duas correntes de pensamento, citadas por Falcão durante a live. A corrente escandinava, composta por alguns países europeus como Noruega, Dinamarca e Finlândia, e a corrente anglófona, composta pelo Canadá e pelos Estados Unidos são as duas grandes definidoras dos Game Studies. Porém, as duas correntes ainda não são capazes de definir a experiência de jogo de uma maneira global. O que Thiago esclarece é que para a compreensão do jogo como técnica, é necessário compreender que essa técnica possui particularidades sociais.

Dessa forma, é preciso ter uma certa ruptura da ideia norte-central da experiência de jogo, especialmente porque estas particularidades fazem nascer certas competências em determinados públicos.

“Dizer que a gambiarra nos transforma em figuras mais versáteis não se trata somente de uma percepção de ‘que como somos menos favorecidos, pelo menos temos que ser melhores em alguma coisa’ (Thiago Falcão)”

Contudo, José Messias levanta alguns pontos que também devem ser levados em consideração. Primeiramente, sobre o risco que essa ruptura apresenta na interconexão entre diversas culturas locais. Da mesma forma que é necessário entender as particularidades das culturas, também é útil entender os pontos em comum entre elas, para que dessa forma seja possível criar um conceito preciso sobre os jogos e a cultura gamer. Uma visão que seja capaz de explicar o mundo, mas com configurações locais.

Um exemplo dessa visão são as diversas speedruns que existem atualmente, tanto de jogos tradicionais quanto de versões hackeadas de jogos. A criação das hacks pode se tratar de uma concepção local (comumente essa prática é realizada pelo norte-global), mas a prática da speedrun é algo global, independente do jogo a ser batido.

Speedrun de uma hackrom de Super Mario World por um jogador do nordeste brasileiro.

Capitalismo e sua apropriação dos jogos e da cultura

Em seguida, foram discutidos pontos levantados pelo próprio chat, principalmente sobre como o capitalismo se conecta com os jogos e a cultura gamer, o que leva a gerar certas ironias, como “por que servidores piratas são tratados como servidores privados?” e “por que o rico utiliza a gambiarra?”. Algumas questões podem ser respondidas pelo simples fator de apropriação pertecente ao capitalismo.

Basta lembrar do comportamento de empresas como a Nintendo, que executa uma caça às bruxas aos emuladores e roms de seus jogos datados, apenas para disponibilizar esses jogos em serviços precificados ou até mesmo revender tais jogos que operam com um emulador por trás.

Coletânea de jogos 3D do Super Mario que rodam com um emulador no console, vendida a preço AAA.

Por outro lado, temos empresas como a SEGA que tendem a abraçar as hackroms e fangames. Contudo, esse “carinho” objetiva o lucro, ainda que pareça disfarçado.

Sonic Mania, um revival do Sonic clássico desenvolvido por uma equipe de fãs do ouriço contratados pela SEGA

Por fim, foi discutido como o capitalismo tende a se apropriar até mesmo do círculo mágico dos jogos (momento em que o jogador está totalmente imerso ao jogo). Isso fica a exemplo das microtransações e aos fatores de monetização dos jogos.

Para conhecer mais sobre este e os outros assuntos discutidos na live, a gravação pode ser assistida no canal do LENS no Youtube.

https://www.youtube.com/watch?v=kLQsHw1QVhE

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