Complexidade narrativa no boardgame Cyclades

Tito Cartaxo
LENS
Published in
7 min readJun 12, 2021
Tabuleiro de Cyclades. Foto de arquivo pessoal.

Neste texto, vamos abordar a complexidade narrativa, extraindo do artigo de Jason Mittell (2012) intitulado “Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea”, elementos estruturais, por nós observados, e aplicando-os ao jogo de tabuleiro moderno Cyclades. Não é nossa intenção, por agora, qualificar o jogo como complexo ou não complexo narrativamente, nem tampouco aprofundar os conceitos e termos aqui explorados, mas sim apresentar os elementos da complexidade narrativa utilizados na mídia televisiva seriada existentes no boardgame analisado.

O QUE É COMPLEXIDADE NARRATIVA?

É notório que as transformações tecnológicas, como afirma Mittell, impactaram a narrativa televisiva, trazendo discussões complexas que convidam o engajamento e a participação dos espectadores. Contudo, o que nos impressiona é o fato de enxergamos tal complexidade inscrita na dinâmica lúdica de um jogo de tabuleiro. Mesmo sabendo que, na mídia boardgame, a inclusão do espectador (jogador), engajando-o na narrativa, é inerente ao consumo desta, ainda nos espanta enxergar elementos da complexidade narrativa neste meio.

Para fazer este exercício comparativo precisamos, primeiro, partir da definição do que seria, para Jason Mittell, a complexidade narrativa. Segundo o autor, a complexidade narrativa:

em seu nível mais básico, é uma redefinição de formas episódicas sob a influência da narração em série — não é necessariamente uma fusão completa dos formatos episódicos e seriados, mas um equilíbrio volátil. Recusando a necessidade de fechamento da trama em cada episódio, que caracteriza o formato episódico convencional, a complexidade narrativa privilegia estórias com continuidade e passando por diversos gêneros.

No decorrer do texto de Mittell, fomos destacando elementos característicos da complexidade narrativa que geram o que o autor denomina como "espetáculo narrativo", que são:

  1. Tramas: múltiplas, entrecruzadas, isoladas, contínuas ou alongadas e incompletas;
  2. Arcos narrativos: múltiplos;
  3. Caracterização do personagem: aprofundada (o que comporta uma evolução gradual, ou até mesmo alternância de personalidade no decorrer da trama);
  4. Aprofundamento de relacionamentos: mesmo tendo a complexidade narrativa uma maior dedicação à trama, o desenvolvimento das relações entre personagens (característica novelística) é, também, criativamente explorado;
  5. Dramas contínuos: refletem os usos criativos das tramas;
  6. Estética operacional barroca: variações episódicas sobre um mesmo tema;
  7. Multi episódico: seriado ou isolado, contínuo ou fechado.

Os elementos acima apresentados foram os mais facilmente identificáveis no texto de Mittell — o que não esgota, por si só, todas as características da narratividade complexa; porém os tomaremos como base para efeito desta análise primária.

CYCLADES E A NARRATIVA COMPLEXA

Traçados os elementos criativos estruturais contidos no texto de Mittell, voltamos o nosso olhar para o jogo de tabuleiro moderno Cyclades montando, analogamente, a composição narrativa existente em uma partida do jogo. Na aplicação desta associação comparativa, identificamos as seguintes similaridades:

  1. Multi episódico: podendo associar a partida, como um todo, a um seriado onde estão contidos episódios isolados (turnos) que podem ser fechados ou contínuos, visto que, por vezes, existem ações preparatórias dos jogadores que não se concluem em determinado episódio (turno), por exemplo: para que um jogador consiga invadir uma ilha próxima com seus exércitos, ele terá, primeiro, que criar a conexão entre as ilhas por meio da colocação de frotas marítimas que só podem ser postas quando este jogador tiver ganho os favores do deus Poseidon. Deste modo, a movimentação de exércitos, estando limitada à detenção dos favores do deus Ares, ficará intencionada para o próximo episódio (turno).
Exército da civilização vermelha invadindo uma nova ilha. Foto de arquivo pessoal.

2. Estética operacional barroca: todos os episódios (turnos) giram em torno do mesmo tema que, poderíamos dizer, ser também a premissa narrativa. Desenvolvimento do império e/ou o objetivo do jogo: chegar ao fim do turno na posse de duas metrópoles.

Exército da civilização azul protegendo uma metrópole. Foto de arquivo pessoal.

3. Drama contínuo: segundo Mittell:

na programação narrativamente complexa, o desenvolvimento da trama tem posição muito mais central, possibilitando emergir um relacionamento e um drama associado às personagens a partir do desenrolar do enredo.

Em Cyclades, o desenrolar do enredo também possibilita o aparecimento de drama associados aos personagens (jogadores). No início da serie (partida do jogo), todos os personagens (jogadores) estão alheios aos seus oponentes, o que possibilita uma certa paz, seguindo, também por analogia, a caracterização do mundo comum (o mundo normal do herói antes da história começar). Entretanto, quando o enredo (partida) avança, o desenvolvimento dos impérios gera a proximidade com os demais participantes que, por sua vez, traz à narrativa um constante clima de tensão dramática. O conflito narrativo é, também, representado no conflito dos dados. Podemos tomar um outro exemplo nos momentos onde o jogador opta por atacar o oponente ou resguardar-se em suas ilhas. Além disto, a diversidade de estratégias possíveis no jogo o torna dramático: construir uma nova edificação ou gastar quase todos os seus recursos para que o oponente não inicie o turno (episódio) com os favores do deus Ares, impedindo assim, que invada seus domínios e incite a guerra, são exemplos de decisões dramáticas do jogo. É difícil precisar quando outro personagem (jogador) vai atacar seus exércitos ou frotas marítimas e este drama se estende por todo o enredo (partida).

Montagem inicial do enredo (partida), o “mundo comum” de Cyclades para 04 personagens (jogadores). Foto de arquivo pessoal.

Os elementos aprofundamento de relacionamentos e caracterização de personagens não foram identificados com clareza em Cyclades. Tratando-se do aprofundamento de relacionamentos, enxergamos que há, entre os personagens (jogadores), uma constante discussão acerca dos destinos da trama, que poderiam ser categorizados desta forma. Além de preocupar-se com a sua própria expansão e vitória, o personagem (jogador) tem, também, que impedir o avanço múltiplo dos demais personagens (jogadores), o que acaba, por vezes, gerando discussões acerca de como poderão agir conjuntamente em determinado episódio (turno) para que o enredo (partida) não chegue ao final. Contudo, seria necessário avaliar melhor tais interações para chegar a uma comparação mais acertada. Deste modo, os elementos acima citados foram tidos como ausentes nesta nossa análise primária.

4. Arcos narrativos: a multiplicidade de arcos narrativos está na quantidade de personagens (jogadores) protagonistas. Em Cyclades, o enredo (partida) pode ser experienciado com uma quantidade de 02 a 05 personagens (jogadores) centrais da trama. Existe, também, a participação de personagens secundários (as cartas de criaturas mitológicas) que a cada episódio (turno) são apresentados na narrativa e podem, inclusive, causar um “ponto de virada” (incidente introduzido na ação que tem a capacidade de mudar seu curso) na partida. Assim, há uma diversidade de personagens que podem atuar protagonizando o enredo (partida) em determinado episódio (turno).

Pinos dos jogadores (protagonistas) e cartas das criaturas mitológicas (personagens secundários) sendo postas no turno. Foto de arquivo pessoal.

5. Tramas: há uma diversidade de tramas em Cyclades. Tramas múltiplas dos personagens (jogadores) protagonistas, dos personagens (carta de criaturas mitológicas) secundários e também as afetadas pela escolha dos deuses no início do episódio (turno). A situação inicial é sempre dramática, devido a disputa pelos favores dos deuses. Muitas vezes, um personagem (jogador) pode, inclusive, não participar do episódio (turno). Para isto, ele faz a sua oferta ao deus Apollon que, como ação dinâmica no jogo, garante que o personagem (jogador) ganhe uma nova fonte de recurso e uma moeda, porém, impede o mesmo de praticar qualquer ação no tabuleiro durante o turno (episódio). Este movimento pode ser considerado, também, uma trama isolada naquele episódio (turno).

Pino do jogador (personagem) fazendo sua oferta a Apollon. Foto de arquivo pessoal.

As tramas no enredo de Cyclades se entrecruzam desde o início do episódio (turno), na oferta dos deuses entre os personagens (jogadores) principais. São identificáveis, também, nas ações praticadas no tabuleiro onde o clímax é, geralmente, a iminência de uma batalha entre as civilizações ou a utilização dos personagens secundários (cartas das criaturas mitológicas) que promova um ponto de virada em determinado episódio (turno).

Frotas das civilizações amarelo e vermelho em conflito marítimo. Foto de arquivo pessoal.

Encontramos em Cyclades, tramas contínuas e incompletas. A trama contínua já foi exemplificada pela estratégia de invasão do personagem (jogador) acima. Quanto a trama incompleta, os personagens secundários (cartas de criaturas mitológicas) por vezes são apresentados na narrativa, porém, não são utilizados no episódio (turno), tendo a sua participação ativa no enredo incompleta. Seus movimentos dinâmicos não afetaram o desenvolvimento narrativo do jogo. Como exemplo, a carta da criatura mitológica Kraken que, se utilizada no episódio, (turno) permanece no tabuleiro tendo, deste modo, sua trama incompleta, pois, este personagem pode “aparecer” novamente em episódio (turno) posterior cumprindo outras funções na narrativa.

O Kraken (personagem secundário) posto no tabuleiro. Foto de arquivo pessoal.

Muitas outras tramas podem ser exploradas ao observamos o desenrolar da partida em Cyclades, porém, para este exercício primário, elencamos apenas alguns exemplos a fim de ilustrar a presença de elementos da complexidade narrativa nas tramas deste enredo lúdico.

A estética operacional e a criatividade estrutural da narrativa complexa têm uma fruição mais rica, possibilitada, em parte, pela aplicações de variações episódicas que comportam episódios isolados com histórias autônomas e tramas isoladas (monstro da semana), episódios seriados com tramas mais complexas e até mesmo tramas não recuperadas durante o desenvolvimento do enredo. A narrativa complexa torna-se, deste modo, um labirinto de técnicas de storytelling, que permite ao escritor explorar uma multiplicidade de arcos narrativos: curtos, longos, incompletos, entrecruzados que fazem com que o espectador busque uma participação cognitiva mais ativa no entendimento do enredo e, apesar de não sabermos ao certo se há ou ouve (no caso analisado) intenção dos criadores em trabalhar elementos da narratividade complexa no desenvolvimento do boardgame Cyclades, é fato que estes elementos se fazem presentes na experiência proporcionada pelo jogo.

Deste modo, vemos que a utilização dos elementos da narratividade complexa no exercício criativo de desenvolvimento de boardgames pode ser um caminho viável para o surgimento de jogos pensados e desenvolvidos para proporcionar aos jogadores uma experiência narrativamente complexa, enquanto estes se debruçam sobre uma prática lúdica nas dinâmicas do tabuleiro.

Por fim uma sugestão musical…

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