Saint Seiya Awakening e as chances de adquirir personagens por classificação

Jogos Mobile Gacha e um patamar preocupante de microtransações

Tristan Lima
LENS

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O mercado de jogos mobile está em constante crescimento nos últimos anos, representando uma boa parcela dos lucros dos videogames no geral. Majoritariamente falando, os jogos mais populares nesta plataforma costumam ser os gratuitos, como Subway Surfers, Clash of Clans, Pokémon Go e Free Fire. A maneira que estes jogos costumam trazer retorno financeiro é por meio de propagandas (ads) que aparecem no jogo ou por meio de compras internas no jogo.

Esse tipo de prática costuma trazer uma forma de acelerar ou ter uma nova forma de gameplay dentro do jogo, como no caso de Pokémon Go em que você pode realizar reides em grupo para derrotar Pokémon lendários gratuitamente uma vez por dia, ou quantas vezes desejar ao comprar passes pagos através das moedas do jogo, que podem ser adquiridas com dinheiro real. Essas vendas são chamadas de microtransações, em que se cobra um valor relativamente pequeno para acessar certos itens ou pacotes dentro de um jogo. O cenário de jogos mobile é enormemente baseado nesse modelo de lucros.

Média de gastos por usuários de iPhone nos Estados Unidos, pela SensorTower

Esse tipo de venda de conteúdos gera os famosos whales, jogadores que costumam investir quantias consideráveis de dinheiro em microtransações. Este público é o principal alvo desses jogos. Nesta mesma linha, existe uma série de jogos mobile que contém mecânicas voltadas ao incentivo desse comportamento: os gachas.

Gachas e suas particularidades

Fire Emblem Heroes, o gacha mobile da franquia Fire Emblem

Diferente das microtransações em jogos mobile tradicionais, as quais você tem plena ciência do que está adquirindo, nos gacha você está adquirindo itens de probabilidade. É um bem virtual semelhante às lootboxes presentes em alguns videogames tradicionais, onde você paga por um pacote sem saber exatamente o que contém nele, estando ciente apenas das chances de um determinado item estar incluso.

O termo Gacha, explicado pelo pesquisador Marco Koeder, advém das máquinas de brinquedos populares no Japão conhecidas por “gacha pon”

A origem da nomenclatura ‘Gacha’ vem de uma máquina-loteria de brinquedos real, ‘Gacha Gacha’ ou ‘Gacha Pon’, uma máquina-loteria de pequenos brinquedos encapsulados. Aqueles que jogam ‘Gacha Gacha’ podem descer a alavanca da máquina para conseguir uma cápsula com algumas centenas de ienes (alguns dólares) por vez. […] Geralmente, os brinquedos Gacha Gacha não são vendidos e precificados em lojas. Dessa forma, aquele que quiser adquirir um brinquedo Gacha Gacha tem que tentar a sorte na máquina, pagando com dinheiro vivo. (M. Koeder)

A nomenclatura também se relaciona à região onde estes jogos costumam ser bastante populares, inclusive onde grande parte são produzidos, que é no Japão. Todavia, o gênero se tornou bastante popular no ocidente, especialmente devido a alguns jogos gachas usarem como tema alguns produtos de entretenimento japonês que obtiveram bastante fama neste lado do globo, como Dragon Ball Z, Cavaleiros do Zodíaco e Captain Tsubasa por exemplo. Estes jogos utilizam a intertextualidade com as obras citadas como principal fator atrativo. Além disso, algumas franquias de jogos da Nintendo também foram traduzidas pro gênero Gacha, como os jogos mobile Fire Emblem Heroes, Dragalia Lost e Mario Kart Tour.

Em geral, a jogabilidade destes jogos costuma ser bastante atrativa, com elementos de RPG, estratégia tática, luta e até mesmo corrida. Contudo, o acesso à certas facilidades desses jogos são definidos pela mecânica dos gacha. Comumente você adquire, nestes jogos, personagens e itens através de um sistema de loteria. São anunciados quais personagens/itens você pode adquirir, e o quão raros eles são. Obviamente, as recompensas mais raras costumam ser as mais atrativas: itens exclusivos e únicos, personagens com habilidades acima do comum, edições especiais de recompensas, entre outros. Esses jogos usam o fator afetivo dos jogadores por determinados personagens como estímulo à aquisição, fazendo uso até mesmo de uma espécie de fetishismo, pois nesses jogos é bastante comum ver determinados personagens em versões comemorativas ou até mesmo em trajes de banho.

Personagem Camilla, de Fire Emblem Fates, em versão do jogo Fire Emblem Heroes com trajes de banho.

Disponibilizar estas mecânicas de avanço facilitado e colecionismo faz qualificar esses jogos como freemium: gratuitos porém com inúmeros estímulos em bens virtuais pagos. No cenário de jogos, costuma-se chamar também de pay-to-win, já que nestes exemplos, quanto mais você paga, melhores são as habilidades dos seus personagens. A exemplo do Mario Kart Tour, em que existe um sistema de rankeamento global, determinados personagens (mais raros, presentes nos níveis de menor chance de aquisição do gacha) conseguem acumular pontos mais facilmente em corridas ranqueadas, por sua vez garantindo recompensas por colocação em temporadas ranqueadas com maior tranquilidade.

Personagens mais raros comumente garantem mais itens e pontos em Mario Kart Tour.

Estímulos e Atrações por Probabilidades

A mecânica dos gacha se assemelha bastante às praticadas pelas loterias ou pelas famosas slot-machines dos cassinos. O jogador é atraído inicialmente pela recompensa e paga pela chance, não pela recompensa propriamente dita. Esse sistema já acarretou diversas problemáticas, fazendo com que alguns governos estaduais e federais chegassem a intervir neste sistema, regulamentando ou até mesmo proibindo estabelecimentos que trabalham no lucro por chance.

Todavia, os Gachas atualmente operam com algo diferente dos cassinos, um fator solicitado pela própria intervenção regulamentária: transparência. Em todos os gachas, devem ser totalmente divulgadas as chances que um jogador possui de conseguir determinada recompensa. Ainda assim, mesmo com as chances baixas anunciadas, os gachas conseguem atrair os jogadores, da mesma forma que uma loteria mantém apostadores.

Chance de adquirir um personagem do nível mais raro em divulgação de Fire Emblem Heroes

A atração pelo risco já é estudada pela psiquiatria há algum tempo e justifica a atração pelas chances baixas da mesma forma que alguém pode ser atraído por uma crença: é uma atração pelo mistério. Em uma entrevista, o professor de psiquiatria na Universidade de Columbia, Dr. David Forrest, adiciona que nosso cérebro busca encontrar explicações pela aleatoriedade. Criamos padrões que não existem, em cenários não padronizáveis.

“Nós não sabemos o que fazer com a aleatoriedade. Nós a conectamos com as leis randômicas do universo, que são, de certa forma, maiores que nós ou inexplicáveis. […] O aspecto não-padronizável nos faz querer projetar um padrão nele”(Dr. David Forrest)

Game Design Obscuro e os fatores Negativos dos Gacha

No artigo “Thinking Outside the Lootbox: Balancing on the Scale of Gacha”, os pesquisadores Erik Jigvall e Kevin Alonso resgataram um conceito útil a respeito dos gacha, o dark game design, ou game design obscuro. Trata-se de um conceito introduzido por José P. Zagal e outros pesquisadores em uma pesquisa sobre os padrões no design de jogos. Nele, são abordados os casos em que os game designers criam padrões para gerar experiências negativas ao jogador. Podemos incluir o fator de frustração nesse quesito.

Isso leva aos casos de “balanceamento” e preferências do jogador a certos tipos de gacha. Em Mario Kart Tour, citado acima, a transparência de chances nele é revelada através de quantidade. Por exemplo, em uma roleta, existem 100 recompensas, e apenas 10 delas são de itens raros. Dessa forma, quanto mais você joga, mais a roleta se esvazia ao ponto que o jogador pode chegar ao cenário de apenas restar os itens raros. Em Fire Emblem Heroes e Saint Seiya Awakening não são reveladas quantidades, e sim chances. Um personagem 5 estrelas de Fire Emblem Heroes ou rank S/SS no Saint Seiya Awakening possuem chances ínfimas de serem adquiridos, mas o “balanceamento” ocorre nestes jogos através de garantias: Fire Emblem Heroes aumenta progressivamente as chances de um personagem raro vir à cada chance consumida e diminui custo de cada tentativa consecutiva e Saint Seiya Awakening recompensa o jogador com fragmentos em cada chance, coletando 150 a 170 fragmentos, um personagem raro é garantido.

Economia de tentativas em Fire Emblem Heroes

Este “Balanceamento” encobre na realidade uma prática de persuasão ao jogador, estimulando o gasto progressivo. Isso leva a questionamentos sobre o potencial que estes jogos possuem de gerar vícios. É comprovado que esse tipo de entretenimento gera estímulos de prazer, o que pode configurar a exploração financeira das tentativas consecutivas como uma prática abusiva (o que motivou a regulamentação e proibição de cassinos em diversos locais). O fator freemium acaba sendo atrativo, também, para jogadores casuais, inclusive menores de idade, que podem se sujeitar a situações de gastos que requerem uma compreensão madura de riscos e oportunidades.

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