Mesclas conceituais: o jogo MAD Diplomacy como um jogo híbrido

Alexander Carneiro
LENS
Published in
10 min readJun 17, 2021

O que faz com que um jogo receba a alcunha de “híbrido”? Entre o sucesso massivo dos jogos digitais e o crescimento do hobby e da cultura dos board games, os jogos híbridos parecem estar mais ou menos esquecidos pelo mercado. Talvez, na verdade, este seja um problema menos de mercado ou produção de jogos e mais de definição deste tipo de produto. Afinal, o que é um jogo híbrido?

O propósito deste texto é duplo: primeiramente, pretendo apresentar um jogo que considero de natureza híbrida — projetado e desenvolvido por este que vos escreve — e seu processo de criação, em uma espécie de memorial descritivo do projeto. Em seguida, colocarei esse jogo sob o escrutínio acadêmico, analisando-o sob a lente de Ville Kankainen, Jonne Arjoranta e Timo Nummenmaa, pesquisadores que propõem o entendimento de jogos híbridos como blends conceituais, verdadeiras misturas de elementos de campos distintos e que, quando combinados, resultam em algo diferente. O objetivo, portanto, será simples: definir se e por que o jogo apresentado aqui se trata de um jogo híbrido.

Diplomacia de fim de mundo

MAD Diplomacy é um jogo de estratégia para computador, offline, para 5 a 10 jogadores. Para jogar, jogadores devem se reunir em alguma plataforma de chat por voz, como Discord, Google Meet ou Skype e, então, organizar a partida. Cada jogador deve iniciar uma instância do seu jogo em seu dispositivo pessoal (PC) e todos dão o start ao mesmo tempo (1, 2, 3, já!). Apesar do software que roda as instâncias individuais de cada jogador não estar conectado à internet de modo algum, MAD Diplomacy (ou simplesmente MAD) trata-se, de fato, de um jogo multijogador: seus jogadores estão competindo uns contra os outros pela vitória e podem interagir entre si, seja através de negociações, alianças, guerras ou espionagem. Além disso, os próprios jogadores estão conectados uns aos outros através da rede de internet para interagir enquanto jogam. Portanto, definir a natureza online ou offline do jogo já não se torna mais uma tarefa tão simples.

Tela principal de jogo de MAD Diplomacy.

MAD Diplomacy é ambientado durante a guerra-fria e cada jogador representa uma fictícia potência nuclear daquela época, competindo por hegemonia global ou, simplesmente, pela sobrevivência. O termo MAD do título é emprestado do acrônimo cunhado no início dos anos 60 Mutually Assured Destruction: destruição mútua assegurada. Trata-se de uma doutrina militar que versava sobre o sensível equilíbrio entre EUA e URSS, durante a guerra-fria, garantido pelo armistício nuclear. A MAD indica, basicamente, que um único ataque nuclear unilateral resultaria, certamente, na completa aniquilação, tanto do defensor, quanto do atacante, considerando que o defensor certamente responderia também com uma retaliação nuclear de grande escala.

O jogo tenta reproduzir esse sentimento de tensão entre os jogadores ao possibilitar que, em dados momentos do jogo, qualquer jogador possa anunciar que está efetuando um lançamento nuclear global, representado pelo grande botão vermelho na parte superior da tela, e, assim, garantir a vitória. Uma vez efetuado o lançamento, porém, quaisquer outros jogadores podem decidir responder ao ataque nuclear, lançando, também, suas próprias ogivas. Nesse caso, ganha o jogador que foi capaz de lançar a maior quantidade de ogivas nucleares no ataque. O grande porém dessa situação — e que garante o sentimento de tensão ao jogo — é que, caso a quantidade total de ogivas lançadas seja maior do que um certo número estipulado pelo sistema, os jogadores são responsáveis por ocasionar uma aniquilação total (uma destruição mútua) e, nesse caso, todos perdem. O que se efetiva, então, é o constante sentimento de desconfiança entre jogadores, que são a todo instante tentados com a possibilidade de apostar no “tudo ou nada”.

Sirenes vermelhas ativadas após o jogador efetuar o lançamento de suas 68 ogivas nucleares.

Um dos principais objetivos no projeto de MAD era o de criar um jogo que unisse os conceitos do gênero de estratégia com o gênero de idle games (ou jogos incrementais). Jogos de estratégia são conhecidos por dependerem extremamente da habilidade do jogador para que o mesmo possa obter sucesso no jogo. Essas habilidades vão desde conhecimentos sobre as mecânicas e possibilidades de jogo, passando por estratégias de reconhecimento do game state (espionar inimigos, descobrir o que os outros estão fazendo) e até habilidades manuais de incrível destreza para otimizar o tempo de cada comando dado ao jogo. São jogos onde a ação dos jogadores e suas decisões são essenciais para o andamento de uma partida ou missão. Os idle games, por sua vez, podem ser considerados o oposto disso. Sua principal característica é a possibilidade do jogador assumir uma postura de ócio (iddleness) e assistir ao jogo enquanto o mesmo “se joga sozinho”. A principal satisfação de jogar um idle game advém de clicar em alguns botões, esporadicamente, e assistir aos números na tela crescerem vertiginosamente, em proporções geométricas para, quando atingirem um certo valor, permitirem uma nova ação do jogador que, por sua vez, fará os números crescerem ainda mais rápido. Tratam-se de jogos sobre escala, investimento e crescimento constante. Apesar de estarem em posições quase opostas no espectro de gêneros de jogos, jogos de estratégia e idle games possuem algo em comum: o gerenciamento de recursos (mesmo que nos jogos de estratégia esses recursos sejam definidos pela escassez e, nos idle, pela abundância). Nesses dois tipos de jogos, jogadores devem estar atentos à maneira como gastam seus recursos e o momento em que esses recursos são gastos. É justamente nesse ponto de convergência em que MAD Diplomacy articula características de ambos os gêneros.

Jogador KangHo do jogo de estratégia Starcraft II executando movimentos no jogo.

Uma partida de MAD Diplomacy é dividida entre vários ciclos e intervalos diplomáticos (que acontecem entre cada ciclo). Durante os ciclos, muitos contadores de recursos dos jogadores avançam automaticamente a cada segundo (como População, Capital, etc.) em velocidades relativas uns aos outros. Durante os ciclos, jogadores podem gastar esses recursos para executar ações simples, geralmente de construção: crescimento populacional constrói casas e aumenta a velocidade com que a População cresce, construir indústrias aumenta a velocidade com que o recurso de Matéria-prima é transformado em Matéria Trabalhada, Taxar aumenta levemente o nível de Revolta, mas dá ao jogador uma quantidade imediata de Finanças. É durante os intervalos diplomáticos, porém, que as características mais empolgantes do jogo se manifestam. Durante os intervalos, jogadores podem efetuar seus lançamentos nucleares, podem fazer negociações e trocar Recursos entre si (cada Recurso possui botões de soma e subtração, para que os jogadores possam efetuar essas operações. O jogo assume que todos os jogadores estão sendo honestos quando usando esse mecanismo.), podem discutir sobre as motivações de outros jogadores e acusá-los ou defendê-los, podem gastar uma grande quantidade de Recursos para desenvolver Doutrinas, que mudam levemente o gameplay do jogador caso desenvolvidas, podem declarar guerras de procuração e podem, finalmente, convocar uma votação de lei internacional. Quando todos os jogadores estiverem satisfeitos com suas atividades no intervalo diplomático, todos, sincronicamente, apertam o botão de ciclo e, então, um novo ciclo se inicia para todos.

Tela do jogo da Corte Internacional.

Através de votações convocadas na área do jogo chamada de Corte Internacional, jogadores podem sancionar ou anular Leis Internacionais pré-determinadas pelo jogo, como Laissez-Faire, Proibição de Armas Nucleares ou Acordo de Paz Mundial. Cada uma dessas leis, caso aprovada, muda significativamente as maneiras através das quais jogadores podem adquirir e negociar Recursos, bem como os limites impostos aos mesmos. Algumas Leis, ainda, adicionam novos objetivos ao jogo, permitindo que jogadores possam perseguir outros tipos de vitória que não a Nuclear. O processo de votação de Leis Internacionais adiciona ainda mais intriga ao jogo, permitindo que jogadores façam acordos de ajuda mútua ou declarem inimigos, tudo isso baseado, claro, em seus interesses individuais.

MAD Diplomacy reproduz uma visão cínica de mundo. Recursos humanos, como População e Elite são tratados simplesmente como números a serem somados ou subtraídos e ações drásticas do ponto de vista humano, como guerras, são representadas na tela de jogo como simples mudanças em uma pequena tela.

Mesclas conceituais

Ville Kankainen, Jonne Arjoranta e Timo Nummenmaa, em seu artigo Games as Blends: Understanding Hybrid Games (Jogos como Mesclas: Entendendo jogos híbridos), criticam o que chamam de uma “visão tecnicista” dos jogos híbridos e propõem uma alternativa para o entendimento e definição desse tipo de jogo. Para os autores, entender os jogos híbridos simplesmente a partir das tecnologias que eles usam não contribui para entender os conceitos que esses tipos de jogos estão de fato pondo em prática.

Kankainen et al argumenta, então, que a metáfora conceitual de blends (ou mesclas) podem explicar o fenômeno dos jogos híbridos de maneira mais abrangente e focando no que realmente interessa: a maneira como eles hibridizam. Os autores trazem uma citação de Fauconnier e Turner:

“Na metáfora conceitual de mescla, a estrutura de dois espaços de input diferentes é projetada para um espaço separado, a ‘mescla’. Essa mescla herda parcialmente uma estrutura de cada um dos dois espaços e possui uma estrutura emergente própria.”

Esquema ilustrativo da metáfora conceitual de mescla. A mescla é formada de propriedades de dois domínios diferentes, que emergem em terceiro domínio com propriedades próprias, colocadas diante de um contexto de um espaço geral genérico. Kankainen et al, 2017.

Os autores seguem então para explicar jogos híbridos como mesclas conceituais de diferentes domínios relacionados aos jogos.

“Jogos híbridos incluem desde jogos de tabuleiro com componentes eletrônicos até jogos urbanos pervasivos. O denominador comum parece ser um domínio não usualmente associado a um certo tipo de jogar mesclado com um tipo familiar de domínio de jogo. Olhar para os jogos híbridos como mesclas evita uma fixação no ponto de vista da tecnologia.

Jogos híbridos extraem [propriedades] de diferentes domínios. Um número significativo de domínios não são relacionados à tecnologia, apesar de a tecnologia desempenhar um importante papel em muitos deles.”

Muitos desses domínios são, inclusive, externos ao universo dos jogos ou mesmo ao campo do entretenimento. Os autores dão o exemplo de jogos como o original Multi-User Dungeon, que pode ser considerado uma mescla entre os jogos de aventura de texto com o jogo de RPG Dungeons & Dragons. O próprio Dungeons & Dragons pode ser considerado um híbrido, sendo uma mescla entre os jogos wargames com o gênero de literatura fantástica. A partir dessa posição, os próprios autores admitem que o que é considerado um produto híbrido ou não tem muito mais a ver com a percepção das pessoas e do mercado sobre o quão diferentes são os domínios mesclados, do que mesmo com suas propriedades intrínsecas de hibridismo ou não-hibridismo.

MAD Diplomacy é híbrido?

A partir da teoria de metáforas conceituais de mesclas podemos, então, considerar o jogo apresentado anteriormente como um jogo híbrido? Através de uma análise da descrição do produto na ótica das mesclas conceituais, argumento que é possível perceber duas instâncias de hibridismo: a primeira, mais relacionada aos gêneros de jogos, quase um soft-hibridismo e; a segunda, mais relacionada às tecnologias empregadas durante o gameplay, um hard-hibridismo.

O primeiro tipo de mescla que o jogo faz é do ponto de vista dos gêneros, ao tentar unir jogos de estratégia com idle games, puxando propriedades desses dois domínios diferentes e, assim, criando um terceiro domínio que possui tanto características dos jogos de estratégia quanto dos idle games, bem como características únicas, emergentes dessa união.

Esquema ilustrativo da mescla de gêneros que resulta no jogo MAD Diplomacy.

O segundo tipo de mescla empreendido pelo jogo — o hard-hibridismo — tem mais a ver com as técnicas/tecnologias empregadas para a possibilitação do gameplay. Requisitando que todos os jogadores, para que possam jogar, estejam conectados simultaneamente em um grupo de chat por voz através de um outro aplicativo, o jogo provoca uma mescla entre o jogar tradicional de jogos de computador e o uso tradicional de aplicativos de chat por voz para conversar. É possível argumentar, inclusive, que inúmeros outros tipos de jogos provocam a mesma mescla. Sempre que jogadores se unem em um voice-chat para jogarem juntos um jogo online, um fenômeno muito semelhante está acontecendo. De fato, poderíamos argumentar sobre a natureza híbrida (ou hibridável) desses tipos de jogos, mas a principal diferença, aqui, é o fato da necessidade do chat por voz estar imbuída intrinsecamente no próprio processo de jogar: o jogo prevê esse processo em suas regras e, sem ele, não haveria jogo.

Ficam exercitadas neste texto, então, as diferentes maneiras nas quais um jogo pode ser considerado híbrido, especificamente através da ideia de mesclas conceituais. Toda essa articulação de termos abstratos e definições abrangentes podem levantar questões sobre a real necessidade de classificar os jogos, pelo menos em termos de híbrido ou não-híbrido, já que é facilmente possível constatar que produtos culturais como os jogos são constantemente construídos a partir de seus anteriores e, como já foi argumentado também, um produto inovador pode ser entendido como híbrido quando surge, mas, a partir do momento em que suas ideias de mescla vão se tornando mais presentes no contexto cultural, a percepção social sobre sua característica híbrida pode se diluir. No texto de Kankainen et al, os autores argumentam que o entendimento de jogos híbridos como mesclas conceituais fornece um esquema fácil e intuitivo para que designers possam extrair propriedades de diferentes domínios e, mais facilmente, criar produtos híbridos.

Ao mesclar propriedades de um memorial descritivo de projeto sobre o jogo MAD Diplomacy com um breve ensaio sobre a natureza dos jogos híbridos e o texto de Kankainen et al, é possível, também, enxergar este próprio texto como um texto híbrido.

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