Nostalgia e Incompletude na Cultura dos Super-Heróis

Thiago Falcão
LENS
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6 min readJul 12, 2021
Vingadores — parece que tem 20 anos já

Super-heróis certamente ocuparam cada espaço da cultura contemporânea: de action figures a jogos de cama, é difícil pensar em um espaço que não encontre formas de representar símbolos, ideias, conflitos, estéticas. Nos tornamos reféns de um tipo de discurso, de um tipo de consumo que nunca nos abandona, que sempre nos convoca a 'um pouco mais', 'mais um episódio', 'mais um filme sem consequência'. Lá atrás, na década de 2000, esse feito era celebrado como a 'convergência'. "Espectadores querem sempre mais", dizia o pensador. Não era suficiente sair do cinema com a sensação de que dever cumprido — aliás, essa sensação precisava ser absolutamente banida do dicionário do entretenimento. Não pode haver conclusão, a não ser que por um breve momento.

O cinema comercial — sobretudo aquele encabeçado pela Disney — tem duas premissas de experimentação, que são um sentimento de nostalgia e uma obsessão com incompletude. Nenhum dos dois pontos é particularmente original, ambos são características recorrentes nos produtos da indústria cultural, mas as últimas décadas acentuaram a propensão 'industrial' a tal ponto que estes valores assumiram uma centralidade perturbadora.

A obsessão com o espírito nostálgico não existe no cinema de super-heróis apenas como um aceno, como algo passageiro: ela é praticamente palpável, no sentido em que orienta — molda; pauta; cria — um tipo de atitude para com a os quadrinhos, impulsionando não sua fruição, mas um fetiche por correspondências, referências, mesmo por spoilers. A cada trailer liberado, a cada episódio semanal, centenas de fãs amadores e profissionais se debruçam sobre aspectos microscópicos desses produtos — frames, muitas vezes, identificando easter eggs e refestelando-se na descoberta, criando teorias. A ideia de compreender o contexto para além do plot é definidora do sentimento de autenticidade e de pertença do fã a esse fandom. Este processo tem importância tão crítica para o fandom que é recebido por muitos dos envolvidos com surpresa, e às vezes até condescendência pela importância que estes produtos parece ter para seus consumidores, como é perceptível no vídeo abaixo, em que Sophia DiMartino, que interpreta Sylvie na série Loki, critica os fãs que se apegam a qualquer teoria, como se algumas delas fossem claramente bobagem.

Sophia DiMartino discute seu papel em 'Loki'.

A esta nostalgia material, responsável por uma conexão incontornável entre dois medium com características muito específicas, e que vai sempre aludir à dimensão da adaptação — ou convergência, no caso — , soma-se um sentimento mais comprometido com traduzir o espírito do passado, que se conecta imediatamente com uma dimensão da história política mais recente.

K A R L M A R X, na knucles do Red Guardian.

Em Viúva Negra isso é visível tanto na sequência de abertura, na qual Natasha e Yelena ainda são crianças, e que enaltece os valores americanos e o estilo de vida neoliberal do período Reagan, um movimento bem recorrente no audiovisual comercial atual, vide Stranger Things; quanto na representação de elementos soviéticos como burocráticos e decadentes, como no próprio David Harbour como Red Guardian, escape cômico com um traje arranhado, com a tinta descascando.

Um capacete parecido com o do Capitão América, mas desgastado, roto.

Compreender a ação impulsionada pelo sentimento nostálgico é importante para que entendamos a dimensão da incompletude: aqui figura a herança da adaptação, ou seja, das histórias em quadrinhos, mas também da própria reencenação do sentimento de saudade de outrora. De um lado, do ponto de vista de estrutura, ou seja, do formato das histórias, por mais que sempre tenhamos experimentado títulos específicos (Hulk, Vingadores, X-Men, e assim por diante), estes sempre fizeram parte de um grande universo e as HQs sempre foram permeáveis, no sentido em que crossovers eram triviais. Do outro lado, a Marvel busca despertar de forma recorrente, em seus produtos, o sentimento da adolescência tardia, do retorno a um mundo mais simples, de um tempo hedonista e despreocupado. Não é só uma questão de ativar a nostalgia pelas décadas de 1980 e 1990, mas também a nostalgia pela própria experiência do mundo ficcional da empresa: agora que uma nova fase se inicia, com novos protagonistas e histórias, porque não voltar e celebrar um pouco mais os títulos de cinco anos atrás? Através de uma prequel sem grande consequência, como Viúva Negra, a Marvel consegue ao mesmo tempo nos transportar pra o momento de euforia pós-Civil War e antecipação pré-Infinity War, enquanto articula seu futuro com Florence Pugh como sucessora espiritual de Scarlett Johansson. Acena-se para o futuro, mas amarra-se a experiência à experiências prévias, a uma cacofonia de passados que sempre são mais generosos e belos que o presente.

Como eu disse acima, a nostalgia utilizada como ingrediente pela Marvel tem endereço certo: ela busca provocar ações específicas. Não à toa uma das principais ações do MCU nessa chegada à televisão foi restaurar a demanda semanal que a Netflix tinha remodelado. Alguma série relevante ainda publica sua temporada inteira num dia só? Provavelmente não — e isso acontece pelo simples motivo de que a experiência industrial da relação entre oferta e demanda desaparecem. Picos de binge podem até gerar tráfego bruto, mas não geram comentários, teorias, mistério; não habilitam a mídia especializada a produzir uma centena de vídeos com data de validade (quem quer ver um vídeo recap sobre o primeiro episódio de WandaVision hoje?). Em suma: retorna-se à estratégia da grade pela simples condição de sua economia política, mesmo que o problema de distribuição esteja estruturalmente resolvido.

O que nos leva para a questão da incompletude, outrora celebrada (continua sendo, na real) pelo potencial criativo e pelas várias formas como causou impacto sobre a experiência narrativa na atualidade. A Marvel foi um dos grandes players nesse sentido, primeiro porque ao fazer uso de sua estratégia de adaptação, cuja quantidade de material de referência para adaptação é IMENSA, foi responsável por explorar em escala industrial o potencial da transmídia. Depois, porque em cada índice de intertextualidade se encontrava o potencial para o lucro, uma vez que a demanda pelos crossovers existia em narrativas da indústria cultural desde pelo menos a década de 1970. Quando Nick Fury apresentou a 'Avengers Initiative' em 2008, sabíamos que os filmes passariam a dialogar de forma bem mais ativa uns com os outros — mas não tínhamos ideia de que chegaríamos no nível que efetivamente experimentamos hoje.

Calendário da Fase 4 do MCU, desatualizado por causa da pandemia de Covid-19.

O que assusta efetivamente nisso que chamo de 'estratégia de incompletude' é a forma como os produtos foram encadeados para manter a atenção do espectador em seu máximo. Só em 2021, já tivemos três séries que se estendem por meses a fio, sem falar nos filmes e séries que se antecipam. A questão acerca dessa estratificação diz respeito a uma colonização da agenda midiática que acaba por transformar os espectadores em reféns dos produtos, capturando sua atenção e compelindo seu consumo assim que estes são liberados, sob pena de o espectador ter que lidar com spoilers que podem arruinar sua experiência. Sites como o Nerdist, por exemplo, dão dois dias para que o espectador esteja a par do episódio, em uma dinâmica que aproxima o entretenimento de uma obrigação laboral.

Finalmente, a questão acerca de tudo que foi discutido jaz no tipo de relação desenvolvida entre espectadores / consumidores / fãs e a rede organizada a partir desses produtos. Não é apenas pensar o produto em si, mas o contexto inteiro, considerando a função de seus paratextos. Algo a pensar, certamente.

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Thiago Falcão
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Professor; Mídias Digitais/UFPB. Game Studies — Media Studies — Fantasia / Horror / FC.