O Embate do Rei Midas contra a Deusa Tiamat

Crônica de fragmentação e individualização midiática no Entretenimento

Tito Cartaxo
LENS
6 min readJul 19, 2020

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Resumo da Crônica pelo “Paradigma do Roteiro” (FIELD, 2001)

Parece que a globalização (dizem que este termo está envelhecido) promoveu o surgimento da aldeia global (outro termo vintage) não apenas no âmbito sócio midiático, mas, também, mitológico. Pois, Tiamat a grande deusa da criação suméria e babilônica está em embate com o Rei Midas, tudo isto por influência de Dionísio, ambos figuras mitológicas gregas.

1º ATO — Apresentação

Aconteceram alguns fatos interessantes do ponto de vista midiático por motivo do estado pandêmico instalado no cotidiano. Na verdade, as mídias e “os Midas” começaram a conflitar.

O fenômeno do qual vos falamos, se tornou observável quando o CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) abriu representação contra o cantor sertanejo Gusttavo Lima, que segundo Rocha (2020), foi o pioneiro da «super live», contando com cerca de 700 mil espectadores simultâneos, batendo todos os recordes em transmissões como estas até o momento, por que o cantor, segundo afirma G1 (2020): «aparece bebendo cerveja com marcas em destaque e outras bebidas alcoólicas ao longo das horas de transmissão.» Bem ao estilo dionisíaco.

Apesar da representação ter gerado polêmica e dado visibilidade ao fenômeno, foi o fator mercadológico/financeiro experimentado por Gusttavo Lima, em sua «super live», que despertou o interesse dos demais artistas e produtoras, gerando uma migração (a priori obrigatória) midiática de shows de entretenimento dos palcos e broadcasts televisivos para os streamings sócio midiáticos. Produtoras e artistas detentores de grande legião de fãs e seguidores observaram que talvez pudessem converter todo este ecossistema sócio midiático em rendimentos milionários. Se tempo é dinheiro, neste caso, a rede vale ouro. É o novo «toque de Midas» aquém das corporações de indústria cultural local.

Em 2004, Ricardo Gandour já estudava as relações de um novo ecossistema informacional e mencionava que «mesmo fragmentado, o ambiente ainda é abastecido — no sentido literal desta palavra — pela chamada “quality press”» (GANDOUR, 2004, p. 11), ou seja, o jornalismo informacional das grandes empresas midiáticas locais (vamos chamar de locais, todas as grandes empresas de mídia do Brasil). Ainda acreditamos que, mesmo encolhidas, as ditas redações tradicionais de informação, ainda concentram a geração de conteúdo, contudo, os cenários estão mudando. O alastramento da Fake News junto ao crescimento do infotenimento (podemos abordar este assunto depois) ou infotainment, que segundo Souza (2004, p. 130), é a transformação da notícia em espetáculo, fazendo um show de informações, está promovendo, ao menos auxiliando, a descredibilização gradual das Tiamats midiáticas, o que acaba por intensificar a fragmentação.

Tiamat Midiática

É bem verdade que, quanto a informação jornalística, as «quality press» ainda detêm certo poderio gerador, porém, no entretenimento, o contexto é outro. De forma simplista, a debandada teve início pela indústria de jogos digitais quando os jogadores começaram a fazer streaming de suas partidas em plataformas como YouTube, Twitch, etc. Muita gente deixou de assistir novelas televisionadas e passou a curtir monólogos «streamados», acompanhando os jogadores em suas aventuras lúdicas num estilo que, agora, vamos batizar de «talkei show».

Fundamentação retórica a parte, voltemos ao fenômeno.

2º ATO — Confrontação

O caminho estava disponível, algumas iniciativas já estavam rodando e muitas delas monetizadas, a tecnologia já havia avançado, só estava faltando, como diria Campbell (1989), «o chamado à aventura». Este chamado chegou com a pandemia instaurada pelo COVID-19, isolados socialmente, artistas começaram a fazer lives de suas casas para o público. As primeiras foram mais tímidas e amadoras, transmitidas diretamente pelo celular em perfis da rede social Instagram, uma live «caseira» no sentido literal e figurado da palavra. Com o avanço desta nova prática de entretenimento, mais artistas foram aderindo ao movimento sempre, como diria Braga (2012), com sentido tentativo. Para Braga, nem todo programa comunicacional humano aposta nos controles voltados para a univocidade, nem para códigos rigorosos. Ele caracteriza os fenômenos comunicacionais como tentativos por dois aspectos. Primeiramente, por serem probabilísticos (existe uma margem, maior ou menor, de ensaio-e-erro; alguma coisa relativamente previsível pode acontecer) e também por serem aproximativos (comportam com maior ou menos precisão, há uma incerteza, uma ausência de controle). E foi justamente dentre deste cenário imprevisível e tentativo que surgiu o primeiro Rei Midas do Brasil: o Embaixador.

Gusttavo Lima “O Embaixador” (Rei Midas)

Até então, só havíamos observado a briga entre dragões (TVs vs. Plataformas), porém, agora, começamos a enxergar que os Midas resolveram assumir o comando dos seus reinos e torna-los independentes (e lucrativos), como demonstra bem o caso do Flamengo que passou a transmitir os jogos, sob seu mando de campo, por streaming em seu canal Fla TV no YouTube. Evento este que acabou por findar na rescisão do contrato da TV Globo com o Campeonato Carioca.

3º ATO — Resolução

É fato que estamos lidando com mudanças estruturais midiáticas progressivas. Porém, todas estas iniciativas precisam ser financiadas ou trazer rendimentos para permanecerem vigorando. Não esqueçamos que vivemos num mundo capitalista. As iniciativas são encorajadoras e audaciosas é verdade. Porém, conta a lenda que depois que o Rei Midas teve seu desejo atendido por Dionísio, verteu-se em empolgação e deslumbre transformando tudo o que tocava em ouro, contudo veio a fome (aqui é onde o dinheiro acaba) e, quando Midas tocava em algum alimento, este se transformava em ouro e não podia comer, até mesmo o líquido não podia beber. Logo, cheio de fome e sede Midas implorou ao deus que lhe retirasse o dom concedido e o deixasse voltar ao estado normal.

Wu apud Gandour (2016) afirma que a fragmentação e a consolidação caminhão juntas, e complementa dizendo que:

«o que é interessante é que a consolidação acaba estimulando a fragmentação». Isto faz surgir, segundo o autor, muitos nichos especializados. O autor ilustra também, com fatos e existência «esmagadora de uma força preponderante que ele chama de “O Ciclo”. Wu vê como “irrevogável o Ciclo dos impérios da informação, o seu retorno eterno à uma ordem consolidada, não obstante o quão poderoso tenham sido as forças de destruição criativa.” “Toda entidade consolidada talvez tenha apenas até a próxima troca de Ciclo antes de ser fragmentada, e tudo o que já está fragmentado terá de esperar até a chegada do seu eventual visionário imperial.”»

Talvez estes visionários imperiais sejam estes «embaixadores» que enfrentaram a Tiamat nos casos apresentados. Mas, estes visionários terão que seguir analogamente ao que apresentou Wu: fazer crescer novas cabeças e se tornar o seu próprio deus, a sua própria Tiamat, para que, diversificando os produtos audiovisuais, consolidem seus canais que, paradoxalmente, são frutos de fragmentação e individualização.

Acreditamos que «a festa» está apenas começando.

REFERÊNCIAS:

BRAGA, José Luiz. Circuitos versus Campos Sociais. In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JÚNIOR, Jeder; e JACKS, Nilda (orgs.). Mediação e Midiatização. Livro Compós 2012. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 31–52

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1989.

GANDOUR, Ricardo. Um novo ecossistema informativo: como a fragmentação digital está moldando a forma pela qual produzimos e consumimos notícias. Estados Unidos: Knight Center for Journalism in the Americas, 2016. E-book. Disponível em: https://knightcenter.utexas.edu/books/NewInfoEnvironmentPortugueseLink.pdf Acesso em: 10 out. 2017

“LIVE politicamente correta não tem graça”, diz Gusttavo Lima após representação do Conar. G1. 16 abr. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2020/04/16/live-politicamentecorreta-nao-tem-graca-diz-gusttavo-lima-apos-representacao-do-conar.ghtml. Acesso em: 13 jul. 2020

ROCHA, Camilo. Como as lives se tornaram centrais para os artistas da música. NEXO, São Paulo, 09 abr. 2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/09/Como-as-lives-se-tornaram-centraispara-os-artistas-da-música. Acesso em: 13 jul. 2020.

SOUZA, José Carlos Aronchi de. Gêneros e Formatos na Televisão Brasileira. São Paulo: Summus, 2004.

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