Que material é um quadrinho ?

Forma, Conteúdo e suas Consequências

Lucas Nóbrega
LENS
6 min readAug 27, 2020

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Ao revisar a história para sua “edição” final […]correu que as quatro,cinco horas que sua leitura correspondia ao tempo que passei ao lado do meu pai, […], seu tamanho final de impressão parece em volume da pequena caixa preta, ou urna, diante da qual me postei por um instante em janeiro, perante uma foto do homem que, de acordo com a etiqueta, ela continha

Quando eu li esse parágrafo no final de "O Menino Mais Esperto do Mundo, de Jimmy Corrigan”, me perguntei acerca da importância da materialidade de um quadrinho. Como é trabalhada no mercado editorial ? Quais as consequências dessa materialidade nos leitores ?

Quadrinhos são narrativas materiais?

Quadrinhos como nos conhecemos são concebidos como arte sequencial, as quais Will Eisner descreve como:

Formas de arte que usam imagens empregadas em uma ordem específica para fins de narrativa gráfica, assim a forma como o quadrinhos se organiza a princípio é um conteúdo gráfico distribuído em sequência.

Há décadas se trabalha no sentido de desvendar como propor as imagens para a melhor forma de narrar a história.

A narração gráfica, posta nesses termos, vai da tira de jornal comum a elaborados esquemas hierárquicos de informação visual. Assim, é preciso trabalhar no formato que cada narrativa, de acordo com sua complexidade, necessita para ser entendida. A parte do Prefácio de Jimmy Corrigan ilustra essa ideia.

Chris Ware, 2000

Ware, para extrair o potencial da arte sequencial, destrincha um quadro em todas suas possibilidades semióticas. O próprio quadro do personagem em ação, por si só, seria suficiente para retratar a mensagem com clareza. Contudo, o autor ilustra a capacidade do leitor de assimilar o conteúdo passado ao possibilitar uma interpretação da complexidade por trás do mecanismo.

Mas essa arte sequencial precisa de um meio específico? Os quadrinhos têm uma materialidade única?

A materialidade é o suporte em que é encaminhado o quadrinho. Originado nas tiras de jornais e passados para as revistas, o quadrinho hoje é reinventado como n variações de revistas e se apresenta inclusive no formato de livro. Com a chegada da internet, quadrinistas e produtores de conteúdo usaram e usam a rede universal de computadores como formato para suas histórias.

A qualidade de produto é inerente ao quadrinho: lhe é atribuído um valor econômico e uma relação com o público que lhe consome (como ocorre com todas as coisas inseridas no modelo econômico capitalista). O suporte ao qual o quadrinho se propagará é vinculado ao valor econômico, ao consumo dos leitores e ao seu conteúdo narrativo.

A qualidade de produto é inerente ao quadrinho: lhe é atribuído um valor econômico e uma relação com o público que lhe consome (como ocorre com todas as coisas inseridas no modelo econômico capitalista). O suporte ao qual o quadrinho se propagará é vinculado ao valor econômico, ao consumo dos leitores e ao seu conteúdo narrativo.

(Mauricio de Sousa-1963)

Com a mudança de formato, o público de quadrinho também mudou. Os avanços tecnológicos e sociais influenciaram a mídia metamorfosear em outros caminhos. Com isso os leitores que acompanhavam o quadrinho popular de jornal mudaram para leitores específicos do próprio meio ou deixaram de consumir o material. Assim os quadrinho se espalharam no mercado de livrarias e lojas especializadas (as chamadas Comic Shops).

Essa mudança dos leitores passou a ser uma mudança de todas as possibilidades dos quadrinhos. Os novos leitores acabaram exigindo outros formatos e conteudos. Começou, então, o fenomeno de quadrinho como item colecinavel, um movimento que mudou a forma como esse item é visto socialmente. Principalmente no período dos anos 80 com o lançamento de marco da mídia como Maus (Art Spiegelman, 1980), Um contrato com Deus (Will Eisner, 1978) e Watchmen (Alan Moore, Dave Gibbons, 1986).

As principais mudanças foram:
- O conteúdo, que começou a ser tratado como relevante quando Maus ganha o prêmio Pulitzer;
- As chamadas graphic novel, onde o formato capa-dura e papel especial se comparava aos livros de luxo;
- Quando o público de super-heróis passou a ver o gênero desconstruído, abordando outras temáticas ao mainstream.

O leitor de quadrinhos antes dos anos 80, não é o mesmo do leitor depois: toda a indústrias foi remodelada aos novos padrões. A industria porvocou um consumismo totalmente desacerbado em que quadrinhos se tornaram uma objeto de coleção mais que uma midias de contar histórias, seja com republicação em formatos de luxo de tiras antigas, seja de grandes obras a preços fora do poder aquisitivo da população em geral. O mercado editoras utilizavam das mais variadas estratégias para engajar o consumidor. Esse fenômeno perpetua até hoje, se não mais, em que toda a produção de quadrinhos é voltada para o produto final ser uma graphic novel, um objeto na estante.

Mas qual é o problema da produção se tornar uma graphic novel?

Na verdade não tem nenhum problema, pois como já foi dito, cada histórias utiliza do melhor formato para ser contada. A questão está, na verdade, em como essa histórias chegam aos leitores: com os avanços no mercado editorial, o público leitor de quadrinhos passou a ser um nicho que é, em sua maioria, homens brancos de classe média. Assim, dependendo do quadrinho, o formato e custo será acessível apenas um núcleo de leitores, excluindo toda uma parcela de possíveis consumidores com menor poder de compra.

Livros mas vedidos na Amazon.br inicio de julho

Nesse contexto o consumo de quadrinho só é acessível a um certo poder aquisitivo. As imagens acima indicam que os livros mais vendidos possume uma faixa de valor elevado, sendo quase inviável à uma pessoa de renda mínima custear esses produtos.

O preço de algumas obras são inerentes ao preço de capa, ao custo de todo o trabalho, impressão, direitos autorais e outras despesas, mas cabe à editora ou ao próprio artista ter noção do produto que ele está sendo colocando no mercado, para que as decisões sejam traçadas com responsabilidade de se comercializar o quadrinho de forma mais acessível.

Um exemplo é o quadrinho falado anteriormente Jimmy Corrigan — O Menino Mais Esperto do Mundo, desde o prefácio ao peso do livro é pensado primordialmente para passar a história. No exemplo em foco, pouco importa se o livro poderia estar numa edição capa-dura ou num papel jornal o importante: esse é o que chamamos de uso responsável da materialidade, pois é o que possibilitará que o leitor/consumidor acesser a obra.

Uma alternativa de uso responsável da materialidade que é possível hoje são as produções independentes, que na maioria das vezes são disponibilizadas em preços acessíveis; outro exemplo são as produções na internet, que em larga medida são gratuitas. O fenômeno nas redes sociais ilustra bem o uso dessas vias responsáveis: milhares de artistas criam e compartilham conteúdo, inteiramente pelas redes, disponíveis a qualquer pessoa. Em geral, esses materiais são como as tiras de jornais que tratam do cotidiano e necessitam da constante interação com o público, mas obras densas feitas especialmente para a própria plataforma também podem ser materializadas por essa via.

A conclusão que chego é que a materialidade é intrínseca ao quadrinho e que sua forma de narração depende do suporte de sua reprodução, mas o ato de narrar precisa ser exato, tendo em vista que o conteúdo deve chegar ao público da melhor forma de maneira que o conjunto do meio leve a história com a maior clareza para o maior número de pessoas. Quadrinhos é uma arte do povo.

Will Eisner, Comics and Sequential Art, Poorhouse Press, 1990 (1st ed.: 1985), p. 5

Ware, Jimmy Corrigan — O Menino Mais Esperto do Mundo, 2000

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