Relações entre Estado e Era da Informação

Possibilidades de Cidadania

Rodolfo Marques
LENS
7 min readAug 27, 2020

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A discussão pública atual sobre cidadania e digitalização da vida social no Brasil tem seus holofotes direcionados ao debate da problemática entre fake news, bots e o cenário político. Nos questionamos como este arranjo influenciou o processo de escolha democrática de nosso representantes.

Apesar de serem questões muito importantes para o exercício da cidadania, elas fazem parte de um debate ainda incipiente, se observarmos as várias conexões entre estado, políticas públicas e a participação cidadã no meio digital. Este texto é um exercício de foco em outras conexões presentes na cidadania brasileira e as mudanças sociais advindas da era da informação.

Em todos espaços públicos imaginados nós temos um processo de digitalização: O ensino a distância como ferramenta educacional, o teletrabalho e os aplicativos de economia compartilhada mudando as relações trabalhistas, os sistema de “score” bancário influenciando no acesso a crédito imobiliário e condições de moradia, a telemedicina com consultas online e o cadastro nacional no SUS como necessário para a garantia do acesso ao sistema.

Direitos e deveres compõem o básico sobre o tema cidadania. No entanto, é na ação e na ocupação dos espaço público que o sujeito se torna um cidadão por excelência. O acesso aos espaços de saúde, educação, moradia, trabalho, fundamentados através de direitos em sociedades democráticas, existem para existem para garantir o mínimo de condições para o exercício da ação livre em sociedade. Sabemos que esse é o ideal, não o real.

Do modo que o espaço do debate público e acesso a informações migrou consideravelmente para as redes sociais, um ambiente privados gerido por empresas e seus algoritmos, os outros espaços públicos, citados anteriormente, também seguem por esse rumo. Para entender como nossa cidadania é afetada nesse processo, o Estado, através de suas políticas, deve entrar na equação, observando de que forma ele se associa com o capital e suas práticas.

As Duas Pontas Do Mesmo Cabo de Guerra

Dois modelos de associação entre o Estado e o capital, na era da informação, se destacam pelo agenciamento que exercem em seus respectivos cenários sociais. O primeiro deles é o modelo de “social score” implementado na China, e o segundo é panorama gerido por grandes corporações do universo digital do ocidente.

Com um forte controle social gerido pelo Estado, o modelo de “social score” (“Zhima Credit”) é o que mais se aproxima com a representação distópica da literatura de ficção científica e da ideia de uma sociedade de controle panóptica. Câmeras, sistemas de reconhecimento facial, drones, smartbands que registram sua condição cardíaca, cruzamento de bancos de dados de diversas origens, e inteligência artificial, constroem um perfil do cidadão e lhe atribui um valor, uma pontuação. Essa pontuação marca o quão bom cidadão você é, e determinados acessos lhe são garantidos, dependendo do score que você possua.

Dentro de um processo de desenvolvimento que iniciou desde 2014, o “Zhima Credit”, com ajuda do governo chinês, leva em consideração cinco pilares para avaliar a pontuação social: comportamento, identificação, relações sociais, histórico de crédito e cumprimento das leis. Qualquer cidadão tem que um perfil avaliado pode ser consultado online. O governo chinês executa um plano de automatização da avaliação através de implantação de inteligência artificial, unindo dados sobre a saúde, finanças, vida online, câmeras de vigilância e dados de aparelho celular.

O acesso a crédito imobiliário, benefícios sociais, celeridade do processo de aquisição de vistos para viajar, prioridade em aplicativos de encontro, além de crédito em banco, são exemplos de questões da vida social contemporânea chinesa que está diretamente associado ao “Zhima Credit”, e o quão bom cidadão você é. O interessante nesta proposta, é que ela foi abraçada pelo governo Chinês, mas ela foi idealizada exclusivamente por ele. A principal companhia que está ajudando no “Zhima Credit” é o Alibaba Group, empresa dona do Aliexpress.

O sistema de pontuação começou com a criação de serviço de pagamento da empresa, utilizando em vários lugares do país. Associado a um sistema de coleta de dados e análise de perfil de consumo do usuário, o sistema sabe quais tipos de pagamento são feitos, os processa através de inteligência artificial e faz sua avaliação. Pagar uma multas por não atravessar na faixa de pedestre, através desse sistema, mostra que você não é um bom cidadão.

Este processo de coleta de dados dos usuários de um serviço digital, e construção de modelos comportamentais, é o modus operandi das grandes corporações digitais no ocidente, e chave para debater inúmeras questões sociais da era da informação.

Redes sociais, buscadores online, serviços de streaming, fintechs, entre outras empresas digitais, há muito tempo perceberam que o valioso em seus negócios não é exatamente o serviço disponibilizado, mas a inteligência que se pode gerar sobre as pessoas que consomem estes serviços através dos rastros digitais que elas deixam. Uma vez que se entende o comportamento do público é mais fácil de direcionar um conteúdo personalizado para a audiência.

O usuário tem contato com uma interface construída a partir de um conjunto de algoritmos que analisaram suas ações, sua relação com outros membros da rede e comportamentos recentes. Eles fazem a curadoria do conteúdo exibido, gerenciam o acesso à informação, e constroem uma interface única para cada usuário, personalizada, que busca suscitar seu engajamento, e sua ação. O algoritmo gera uma governança sobre o sujeito.

Essas interfaces que não são passíveis de auditoria, de uma forma simples, e algoritmos que não são passíveis de análise, visto que são propriedades privadas. Todo nosso espaço “público” de manifestação digital é mediado por corporações privadas.

O caso da Cambridge Analytics, que utilizou a base de dados do Facebook, para produzir perfis comportamentais de eleitores, acelerou o processo de intervenção do estado na atuação dessas empresas. Uma dessas resultantes, foi a visibilidade dada a lei de proteção de dados europeia, e sua implementação sobre um conjunto de companhias. Essa empresas foram obrigadas a modificarem a forma como lidam os dados dos seus usuários.

O sentido desta intervenção do Estado Europeu remonta a ideia da cidadania e das garantias individuais historicamente consolidadas. Sejam elas provenientes de um pensamento iluminista, ou advindas de um histórico de construção do estado de bem estar social para o cidadão europeu, este caso denota um contraponto à associação entre Estado e as corporações que lidam como a construção do espaço digital, na China. A associação entre Estado e capital fundamenta qual o cenário que enfrentaremos, e qual os espaços de ação podemos encontrar.

O Modelo Tupiniquim

O Estado brasileiro, pós redemocratização, adquiriu uma natureza híbrida na forma de gerir sua política pública. Ele não é um estado liberal do ponto de vista econômico e de políticas públicas, e não é, ao mesmo tempo, um estado de bem estar social, pois mesmo com sistemas nacionais de educação, saúde e previdência, a rede privada possui um papel fundamental na execução destes serviços.

O Estado brasileiro não é autoritário nos moldes da ditadura militar brasileira, cassando direitos políticos, liberdades individuais, no entanto, ele não é tão democrático quanto se argumenta, ao passo que continua extremamente violento através do aparato policial, oprimindo classes periféricas através do aparato judicial, além de negar às minorias uma série de proteções e direitos.

É nessa celeuma de ações que se tenta avaliar a postura do Estado em frente às mudanças sociais desencadeadas pelas tecnologias digitais, como fizemos no tópico anterior. Em alguns aspectos nós temos uma aproximação com os ideais totalitaristas chineses e, em outras, com o sistema de garantias análoga a países europeus.

O governo brasileiro, no final do ano de 2019, através de um decreto presidencial, criou Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados. O decreto estabelece as normas e as diretrizes para o compartilhamento de dados entre os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e os demais Poderes da União, sem a necessidade de um acordo formal entre as instâncias.

Mais de 50 bases de dados seriam compartilhadas e consolidadas em um único sistema, que incluem registros educacionais, de veículos, registros médicos informações biométricas atreladas ao CPF de cada cidadão na base de dados. A alegação para criar esta base de dados é possuir uma referência única de informações dos cidadãos para o governo.

Ainda este ano, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) pediu ao Serpro (agência pública de processamento de dados) acesso a dados de mais de 76 milhões de pessoas que possuem uma Carteira Nacional de Habilitação. Um serviço estatal, responsável por informar o presidente nos assuntos de interesse nacional, requisitar esta base de dados, associado ao fato do governo facilitar a troca indiscriminada de dados privados, acende alguns alertas sobre a real necessidade dessas ações e da forma como o Estado lida com nosso dados.

Em contraponto a isto, o Brasil passou por dois processo de discussão sobre a regulamentação do seu espaço digital. O primeiro deles foi com o Marco Civil da Internet, e o mais recente, foi a Lei Geral de Proteção de Dados. Dois processos longos, com inúmeras discussões, muito lobby, e participação civil que culminou em regulamentações jurídicas de proteção do cidadão no espaço digital, e nas responsabilização dos atores envolvido no processo.

Neste cenário confuso, entre o flerte com autoritarismo e o sonho com um sistema de garantia de direitos consolidado, as grandes empresas que dominam a construção do espaço digital vão testando os limites: ora garantindo a livre manifestação do pensamento, ora permitindo o tratamento desumano ou degradante, não assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, ora avaliando onde chega a intimidade e a vida privada de um usuário, dentro da uma política de uso dos dados.

Nós ainda temos algumas possibilidades de mudança do espaço público digital no Brasil. Essas possibilidades não vem das plataformas, e é pouco provável que venha. Ela deverá vir da mesma foram que as demais mudanças sociais vieram no país, através da participação popular, de preferência civil e organizada. Devemos pautar cotidianamente ações de igualdade de acesso e participação, além do combate às fake news e desinformação na rede.

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Rodolfo Marques
LENS

Este espaço será um local para exercícios de produção textual. Um local para praticar pequenos salto e quedas pouco dolorosas.