Reparando o Jogar

Alexander Carneiro
LENS
Published in
6 min readAug 10, 2021

Por uma Fenomenologia Negra do Jogar

Aaron Trammel, professor assistente na University of California e membro do corpo docente de estudos visuais, inicia sua fala na série de palestras Metagame Speaker com uma declaração curta e assertiva: nossa definição de jogar está quebrada.

Você pode assistir à palestra de Aaron Trammel e às perguntas e respostas na íntegra aqui.

Após tocar um trecho da música de Chain Gang, de Sam Cooke, Trammel mergulha de cabeça no assunto. Os potenciais emancipatórios do jogar foram cooptados por discursos de ódio, preconceito e retóricas da alt-right. Não é necessário ir muito longe no universo gamer para descobrir isso. É possível encontrar esses discursos ou indícios deles em chats de voz de jogos online, comentários em transmissões ao vivo ou em fóruns dedicados no 4Chan ou Reddit. A partir desse contexto, até que ponto podemos considerar a atividade de jogar, em sua definição, como algo intrinsecamente prazeroso, seguro, livre e divertido? Aaron nos lembra que a atividade de jogar (play) não se limita apenas aos jogos e que podemos encontrar situações em que o jogar se relaciona diretamente com a dor.

“O jogar é nosso salvador, ou nosso opressor? A tradição negra radical está recheada com histórias de navios negreiros, mas também está recheada com histórias de arte, música e outras formas de jogar que pouco tem a ver com jogos. Os homens na canção de Sam Cooke estão cantando, mas também estão sofrendo.”

É a partir dessa premissa que Aaron Trammel busca reparar nossa definição quebrada do jogar, definição essa que foi criada e até hoje é alimentada em um contexto intelectual branco e eurocentrista. Ao encarar o jogar como uma atividade necessariamente positiva, como é proposto por teóricos como Johan Huizinga e Roger Caillois, a tendência é que as experiências de pessoas negras e pessoas de cor sejam constantemente invisibilizadas, pois as vivências dessas pessoas em contextos de jogar nem sempre são pautadas pelo prazer. Uma dessas experiências, por exemplo, é a atividade de tortura, que Trammel afirma se enquadrar dentro de uma noção de jogo em seu artigo Torture, Play, and the Black Experience. Ele aponta o caminho na direção da reparação do jogar:

“Para reparar o jogar nós devemos despir as dicotomias racistas de civilização e barbárie que, por si, foram usadas para justificar o comércio de escravos. Nós devemos abandonar o conceito de que algumas formas de jogar são mais nobres ou intelectuais que outras, pois, enquanto não fizermos isso, estaremos todos juntos em um barco naufragando, em sérias necessidades de reparo.”

Para Trammel, a música e sua profunda relação com o jogar e a história dos escravos nos Estados Unidos oferece um bom caminho para pensar como o jogar pode ser reparador. “O escravo canta mais quando está sofrendo mais”, cita ele em sua fala. O cantar e o ouvir da música podem ser reparativos, nesse contexto, pois permitem que as pessoas envolvidas criem um caminho através do qual possam canalizar suas emoções.

“O jogar tem um grande potencial para reparar, mas para conseguir isso nós devemos adotar um léxico de jogar que esteja claramente conectado com as histórias e experiências de pessoas de cor ao redor do mundo. Essas histórias são emocionantes, inovadoras e comumente constroem e englobam afetos que são mais do que apenas ‘prazerosos’. A reparação do jogar deve engajar com a tristeza dos negros para que possa ser considerada reparativa. Entender, então, as maneiras através das quais o jogar pode produzir dor é essencial.”

Aaron segue então comentando não somente os impactos negativos que definições eurocentristas do jogar podem ter em experiências de pessoas de cor, mas, também, nas dificuldades que designers de jogos e outros artistas desses grupos enfrentam durante o processo de concepção, desenvolvimento e distribuição de suas obras. Trammel direciona seu olhar para designers de jogos através da tradição negra radical para entender como ela está articulada atualmente nessa comunidade de criadores.

O designer de RPGs Mike Pondsmith é colocado por Trammel como um exemplo a ser analisado. Em 1987, o jogo de RPG de mesa Cyberpunk, escrito por Pondsmith é publicado pela empresa Talsorian Games e com o tempo torna-se um produto de sucesso, inspirando continuações como Cyberpunk Red (2020) e o famoso jogo de RPG digital Cyberpunk 2077 (CDProjekt Red, 2020). Trammel argumenta que apesar do jogo se tornar rapidamente um hit, a raça de Ponsmith quase não está presente no jogo. “E por que estaria?” pergunta o palestrante.

“No cinema ou no teatro, o projeto de casting não tradicional estava apenas começando a advogar por uma abordagem mais inclusiva aos elencos nas mídias de massa na época em que Pondsmith estava inventando Cyberpunk. Pondsmith estava publicando em uma rede de hobbystas predominantemente brancos, em uma época em que jogos de RPG estavam disponíveis apenas em lojas de ferromodelismo.”

Capa do livro de RPG Cyberpunk 2020, publicado pela R. Talsorian Games.

Ainda assim, Cyberpunk trata de temas extremamente políticos, retratando um futuro dominado por megacorporações capitalistas e uma cidade principal do cenário, Night City, onde a minoria da população é branca. “Pondsmith imagina futuros negros”, diz Trammel em um momento de sua fala.

Capa do livro de RPG Steal Away Jordan: Stories from America’s Peculiar Institution, da designer Julia Bond Ellingboe.

Mike Pondsmith está longe de ser o único exemplo. Aaron cita a autora Julia Bond Ellingboe e seu RPG Steal Away Jordan, um jogo que coloca seus jogadores na pele de um escravo negro no auge da instituição da escravidão nos EUA, durante o período antebellum (antes da Guerra Civil Americana). Steal Away Jordan recebeu duras críticas por tratar de um assunto tão sério quanto a escravidão em um tipo de mídia que, supostamente, deveria se concentrar em temas mais leves. Sua natureza de jogo também foi questionada por alguns, que viam em sua ambientação e temática sérias um propósito educativo muito mais do que o de divertir. Ellingboe usa referências de muitos autores e autoras negras para criar um jogo que tenta recontar a escravidão do ponto de vista dos escravos através de histórias que, para Trammel, envolvem “a lida com traumas, conspirações uns com os outros e conceitos de conforto, alegria e liberdade.”. Alguns jogadores, presumivelmente brancos, comumente retratavam sentimentos de desconforto com o jogo, alegando terem medo de “não entenderem direito”. Isso se relaciona com as escolhas de projeto de Ellingboe em seu jogo e na maneira como Steal Away Jordan trata tão diretamente de trauma e sofrimento.

“Abraçar o doloroso tanto quanto o prazeroso é o que torna a estética negra radical tão pungente.”, diz Trammel.

Trammel evidencia que Pondsmith e Ellingboe tomam abordagens bem diferentes em seus jogos mas que, ainda assim, ambos podem ser concebidos dentro da tradição negra radical. “Ambos tentam trazer à superfície as contradições da cultura branca.”. Aaron Trammel conclui sua fala:

“Reparar o jogar é um jogar que se lembra, um jogar que fala a verdade sobre o poder e um jogar que é consciente de seu próprio endividamento. Temos que nos lembrar, o jogar negro é sobre dor tanto quanto é sobre prazer. A dor que assombra comunidades negras nos EUA tanto quanto de pessoas de cor ao redor do globo é a dor da dívida. Enquanto o jogar for colocado por designers e publishers como preferencialmente prazeroso em detrimento do doloroso nós continuaremos a viver aprisionados. Subordinados a um sistema que valoriza e continua a criticar e deliberadamente interpretar errado a estética negra. Reparar o jogar é um projeto contínuo, jogar não pode ser reparado sem reconhecer como artistas negros e de cor trabalham com o jogar em seus jogos criados, músicas cantadas e murais pintados. Além do mais, nós reparamos o jogar quando reconhecemos como o jogar flutua acima, abaixo aos lados e através de todos os meios artísticos. Do jeito que está agora, o jogar foi fragmentado em estéticas disciplinadas. Uma fenomenologia negra do jogar, portanto, olha para os afetos que artistas negros precisam conjurar para teorizar o senso de reparação.[…] Reparar o jogar é apreciar como o jogar é polifônico e produz afetos através de vários jogadores e ao longo de muitos meios. O projeto colonial do jogar, que lê seu potencial como aqueles alinhados ao conceito de civilização, está em seus anos finais. Reparar o jogar deve se importar não apenas com o legado da civilização no jogar mas também com um futuro negro especulativo, onde jogamos juntos em uma teia de ajuda mútua e apoiamos uns aos outros em tempos desafiadores e em tempos alegres. Eu escolho a palavra reparar pois ela faz parte da etimologia de reparações, mas também porque eu a vejo como uma forma de jogar que é capaz de olhar para a produção de afetos e, ao fazer isso, repara os danos que o colonialismo trouxe.”

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