Tabuleiros Menos que Modernos

Uma breve viagem pela história dos antepassados dos jogos de tabuleiro atuais e reflexões sobre o que representavam, como eram encarados e quais continuidades podemos ver com nossos produtos de hoje em dia.

Alexander Carneiro
LENS
9 min readApr 9, 2021

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Kumiko, jogo/ritual japonês de apreciação de incensos. Século XVIII.

Zombicide 2nd Edition é um jogo de tabuleiro lançado em 2021. Se trata de uma edição revisada do predecessor de mesmo nome, incluindo um retrabalho na arte, regras e jogabilidade. Sua publicação é possibilitada a partir de plataformas digitais de financiamento coletivo, bem como extensivas campanhas de marketing em diferentes redes sociais e igualmente extensivas redes sociais de fãs da franquia. Os componentes físicos do jogo provavelmente são produzidos em fábricas chinesas, enquanto o conteúdo conceitual é uma grande mistura de temáticas, ambientações e referências americanas por excelência, desde o clássico tropo dos zumbis até mecânicas apropriadas de jogos de RPG.

Apesar de tudo isso, Zombicide 2nd Edition pode ser chamado por seus jogadores, principalmente os brasileiros, de um boardgame moderno.

Se Zombicide pode ser considerado um jogo moderno, por sejam lá quais as razões, o objetivo deste texto é explorar jogos não tão modernos assim, ou menos que modernos e, até mesmo, os que não são modernos de jeito nenhum.

Em seu livro Critical Play, a autora Mary Flanangan faz uma compreensiva análise cronológica de jogos de tabuleiro pré-modernos e traz insights históricos sobre suas particularidades materiais e formais. Todas as citações deste texto serão desse livro.

Mancala — 6300 a 5600 AEC

Tabuleiro da Era Neolítica, encontrado em Petra. Em: greenprophet.com/2020/02/fortnite-multiplayer-games-ancient-western-east/, 2020.

Também batizado de Awari, Owari, Warri ou Pallanguli, o nome mais conhecido do jogo, Mancala, vem da palavra em árabe que significa, literalmente, “mover”. Flanagan coloca essa forma de jogo como provavelmente a mais antiga, desenvolvida em civilizações próximas ao local onde hoje é o Oriente Médio. Cidadãos da Mesopotamia ou do Egito poderiam cavar ou entalhar um número de pequenos buracos no chão ou em outras superfícies e usar contas, pedras ou sementes para jogar. A autora evidencia a semelhança das ações performadas nesse jogo com a atividade de plantar.

“O Período Neolítico foi uma era revolucionária na evolução humana, na qual humanos se tornaram reconhecidamente Homo sapiens e desenvolveram uma cultura agrária capaz de refletir sobre os caprichos da natureza e do destino. O fato dos jogos no estilo mancala envolverem uma ação modelada em plantar sementes apoia essa afirmação.”

Senet e o Jogo real de Ur — 3050 e 2600 AEC

Alguns milênios depois é possível ver importantes mudanças na materialidade e regras dos tipos de jogos. Os componentes começam a se tornar mais reconhecíveis, talvez até mais padronizados — como objetos dedicados e criados para o único propósito do jogo — e o surgimento de um elemento central que se tornaria presente nos jogos até os dias de hoje: a aleatoriedade.

Senet, no The British Museum.
O Jogo Real de Ur, no The British Museum.

Senet e o Jogo Real de Ur possuem similaridades formais e materiais. Ambos apresentam tabuleiros produzidos com um material rígido, sobre o qual as peças são colocadas e manipuladas. Ambos apresentam subdivisões desse tabuleiro — outro elemento que se tornaria paradigmático nos jogos, as chamadas “casas”. Ambos os jogos são competitivos, são fortemente influenciados pela sorte e envolvem levar suas peças do início até o fim do trajeto.

Tão importante quanto suas características formais e materiais é o fato de que foi provavelmente durante esta época em que os jogos começaram a ter um forte valor de significado. Não apenas significado enquanto jogos, diversão ou passatempo, mas algo extrínseco à atividade de jogar. Especialistas se referem ao Senet como um jogo sagrado, frequentemente simbolizando a jornada espiritual após a morte.

“Apesar de Senet ser entendido como um jogo social, documentos históricos revelam seus fortes laços com rituais da cultura egípcia. Várias pinturas foram encontradas retratando jogadores de Senet jogando sozinho, ou contra um oponente espiritual. Dessa forma, o jogo pode ter funcionado como um meio-espiritual, conectando os vivos ao mundo dos mortos.”

Outros exemplos de jogos trazidos por Mary Flanagan são belos e extraordinários demais para serem simplesmente ignorados.

Cachorros e Jacais, ou 58 Buracos. Em algumas versões o tabuleiro representa as costas de um hipopótamo, provavelmente inspirado na deusa Taueret. The Met Museum. 2040–1782 AEC.
Mehen, ou jogo da cobra. O tabuleiro representa o corpo de uma cobra enrolada e suas escamas são as casas. Datado da Segunda Dinastia. The British Museum.

Tafl

Menos um jogo do que na verdade uma categoria, jogos caracterizados como tafl se popularizaram na Europa, com influência romana e céltica. Tafl engloba jogos competitivos com um tabuleiro dividido e dois times assimétricos — representados pelo número diferente de peças para cada time. Não há chance e nem informações ocultas e os jogos geralmente eram tematizados com histórias de cerco, agressão e presa e predador. A versão gaulesa desses jogos possui o charmoso nome de Tawlbwrrd e retrata um rei e seus protetores tentando escapar ou se defender de invasores mais numerosos.

Hnefatafl, versão norueguesa dos jogos Tafl, datado do século XV. Museu de História de Oslo.

O tema do sagrado ou do culturalmente significativo continua de maneira mais ou menos presente com os jogos tafl. Henetafl é mencionado na saga Grettis islandesa e a versão Fidchell é declarada como criada pelo deus celta Lugh.

Versão atual do jogo Celta Fidchell.

Esse estilo de jogo não passou despercebido pela Igreja Católica da época e, depois de sucessivas tentativas de banimento e proibição, a estratégia aparentemente mais eficaz se mostrou a assimilação. O jogo Alea Evangelii é descrito pela primeira vez em um manuscrito do século XII, também chamado do “Jogo de Tabuleiro do Gospel”. É uma variação de tafl com temática religiosa no qual “24 guardas enfrentam 48 atacantes”.

“Alea Evangelii marca um dos primeiros usos de jogos de tabuleiro como uma ferramenta ideológica. No geral, porém, jogos Tafl representam uma quebra significativa de outros jogos do Oriente Médio ou da Mesopotâmia no fato de que eles emergiram primariamente como puro entretenimento. Suas conexões com o reino espiritual eram menos documentadas ou propositalmente escondidas.”

Representação esquemática do Alea Evangelii, datada de 1140 EC. Oxford.

E-awasi e Sugoroku

Flenagan descreve um jogo de conchas japonês, E-awasi, comumente jogado como uma atividade social relaxante, não tão séria, um jogo para se jogar acompanhado de uma conversa. Ele envolve cenas do cotidiano repetidas pintadas em conchas, que eram organizadas e agrupadas pelas jogadores, frequentemente mulheres, que também se encarregavam da produção dos próprios componentes.

E-awasi, Japão. 795–1192 EC. Met Museum.

Com o advento da impressão no Japão, jogos impressos em papel se tornaram uma possibilidade, conhecidos como Sugoroku, frequentemente abraçando a categoria de jogos de trilha.

“Como outros jogos de tabuleiro, Sugoroku reivindica raízes sagradas e, apesar de pesquisas sobre esses jogos serem limitadas no Ocidente, jogos baseados em imagens como o Sugoroku podem ter sido incorporadas na vida monástica de templos Budistas durante o século XV.”

É a partir desses exemplos de Sugoroku que conseguimos ver nos jogos as capacidades de representar aspectos da vida cotidiana com muito mais iconicidade, ao invés de representações abstratas nos jogos anteriores. Regras também parecem continuar a se condensar, elegendo características como trilhas, casas, dados e peões como majoritários nos jogos. Esses jogos de trilha podiam representar poemas, cenas cotidianas, viagens, mensagens morais ou , até mesmo, o processo de vestir uma armadura.

Sugoroku de Utagawa Yoshikazu, mostrando o processo de se vestir uma armadura samurai. Período Edo, Século XIX. Wikimedia.

Jogos Americanos e começamos a nos tornar modernos

“Nos Estados Unidos e Europa, a produção em massa de jogos emergiu no século XIX, muito depois do que na Ásia. Porém, jogos produzidos comercialmente no período oferecem uma janela para os valores, esperanças e crenças de um país encarando imigração, urbanização e o crescimento da indústria.”

É no século XIX em que os jogos de tabuleiro começam a se parecer bastante com os que temos hoje, ao menos em termos puros de materiais, imagens, produção e aquisição. Os jogos dessa época nos EUA já eram criados por empresas tendo como objetivo a venda para crianças. Tendo em vista a força da moralidade e dos valores protestantes na sociedade daquela época, é fácil assumir que atividades de puro lazer e entretenimento não seriam encorajadas a menos que possuíssem mensagens de importância e valor moral. Com a mudança dos tempos e a maior industrialização, os jogos acompanharam mudanças sociais e seu teor se transformou de instruções morais e religiosas para o puro entretenimento, lazer, diversão ou educação, até chegar em temáticas de guerra e economia. Nessa época, também, com diferentes mercados e técnicas de produção, é possível ver o início do processo de uma maior diversificação nos jogos, apesar de muitos ainda se encontrarem na categoria de jogos de trilha.

Em Mansion of Happiness, primeiro jogo americano a ser vendido em massa, jogadores deveriam chegar na “felicidade” para ganhar o jogo, avançando na trilha e lendo diversas mensagens sobre bom comportamento e conduta moral no contexto domiciliar.

“Em outras palavras, as regras do jogo ditavam que o domicílio era, pelo menos em um nível metafórico, o campo de batalha entre o bom e o mau comportamento.”

The Mansion of happiness, 1930.

Algo digno de nota é que, devido à aversão daquele contexto moral a jogos de azar, os dados eram comumente substituídos por outros componentes de aleatoriedade, como piões de faces enumeradas.

Flanagan continua e compara os jogos americanos dessa época aos seus paralelos europeus. Na Europa, os jogos de trilha, ao invés de retratar bons costumes morais, representavam mitos ou histórias nacionais, como o Jeu de la Révolution Française, que retratava o processo da revolução francesa e finalizava com a formação da Assembleia Nacional.

Jeu de la Révolution Française, 1858.

Em 1904, provavelmente um dos anos mais definitivos para os jogos de tabuleiro, o primeiro jogo é patenteado, sob o nome de The Landlord’s Game, jogo criado por Elizabeth Magie para criticar a lógica de monopólio imobiliário da época e espalhar ideias sociais. O jogo que, no futuro, viria a se tornar Monopoly.

Talvez o que seja mais destacável desse processo histórico de transformação dos jogos de tabuleiro seja um movimento de pêndulo entre representar processos e conceitos abstratos (valores morais, significados religiosos, sentimentos de revolução) ou cenas concretas, reais, palpáveis (guerras e batalhas, vida cotidiano, instruções domésticas). Enquanto os métodos de representação visual vão se aproximando cada vez mais do seu objeto, via a iconicidade, por causa do desenvolvimento tecnológico, os objetos que estão sendo representados parecem sempre variar em um espectro entre o mundano e o conceitual.

A meu ver, existem muito mais continuidades do que rupturas quando comparamos nossos jogos de tabuleiro modernos com seu antepassados. Entre componentes, regras, paradigmas, formatos, materiais, temáticas e qualidades, herdamos muito mais do que recusamos. Características de informação perfeita, assimetria, aleatoriedade mitigada e balanceamento talvez já pudessem ser encontradas milênios atrás, porém, nesse processo inconsciente de filtragem que se deu através dos tempos, parecemos ter padronizado e congelado nossa noção de jogos de tabuleiro e deixamos para trás conceitos que poderiam ser remodelados para os boardgames contemporâneos. Acima de tudo, jogos pareciam sempre representar a cultura, os valores, pensamentos e modos de vida das sociedades que os criavam. Quando regras de jogos eram assimiladas de outras culturas, sua temática, componentes e representações eram devidamente adaptadas, criando um constante senso de identidade cultural entre jogos e jogadores. Talvez seja justamente essa característica que os torna jogos de tabuleiro bem menos modernos.

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