Tecnofobia em Phasmophobia

Nada é mais assustador do que uma lanterna falhando

Alexander Carneiro
LENS

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É noite e está chovendo. Você abre a porta e entra na casa. Imediatamente o barulho do silêncio preenche sua audição. A casa está vazia, mas mesmo assim você escuta o barulho de passos: há uma presença sobrenatural na casa. Vultos aparecem e objetos se movem sozinhos, toda a atmosfera é assustadora, mas o medo de verdade começa quando a sua lanterna começa a falhar.

A cena acima é um breve relato de uma experiência típica no jogo de terror hit de 2020: Phasmophobia. Lançado no mês de setembro pela empresa Kinetic Games, o jogo foi sucesso quase imediato, se tornando o sexto jogo mais jogado no Twitch e igualmente sexto mais jogado na plataforma Steam. Enquanto escrevo este texto, cerca de 1 ano depois de seu lançamento, Phasmophobia ainda permanece entre os 100 jogos mais jogados do Steam, com um total de mais de 14 milhões de horas jogadas.

Phasmophobia tem uma jogabilidade relativamente simples, apesar de esconder truques e complexidades abaixo de sua superfície. 1 a 4 jogadores encarnam o papel de caçadores de fantasmas, cujo objetivo é adentrar um local mal-assombrado e determinar a natureza exata do fantasma que habita aquele lugar. Atualmente, existem 20 tipos diferentes de fantasmas a serem descobertos, cada um com suas características e formas de identificação.

Para a realização dessa tarefa — a identificação dos fantasmas — , os jogadores e jogadoras contam, principalmente, com equipamentos e meios tecnológicos. Se, para Marshall McLuhan, os meios são a extensão do homem, em Phasmophobia essas extensões são usadas para alcançar o sobrenatural. A localização dos fantasmas se dá através de equipamentos como termômetros infravermelhos, medidores de campos eletromagnéticos, walkie-talkies modificados e câmeras fotográficas analógicas.

É essencialmente através dos meios que os jogadores têm acesso ao fantasma. Temperaturas baixas, vultos em fotografias, alterações nos campos eletromagnéticos e mensagens em rádio: todas essas evidências são sinais tanto da presença do fantasma quanto de seu tipo. Assim como as ondas eletromagnéticas da internet, da TV digital e dos celulares, que necessitam de equipamentos para serem recebidas, decodificadas e exibidas, os fantasmas em Phasmophobia são um fenômeno a ser captado pelas tecnologias, receptado por elas. Durante a maior parte das partidas, os jogadores só são capazes de percebê-los através dessas extensões. E não são apenas capazes de percebê-los, também desejam percebê-los, afinal, captar os fantasmas, receptar sua existência através dos aparelhos, é o grande objetivo do jogo.

Phasmophobia, no entanto, mantêm seus jogadores em uma sensível corda bamba, na qual o equilíbrio parece cada vez mais impossível a cada minuto jogado. No jogo, os jogadores efetivamente desejam o contato com o fantasma, por vezes até provocando-o para que suas interações sejam registradas e captadas. Os jogadores, no entanto, não desejam o extremo desse contato: a cada minuto que passa com a presença e interação dos jogadores, o fantasma pode ficar mais irritado, o que aumenta o número de interações, mas também aumenta as chances de uma Caçada. O jogo então coloca seus jogadores na posição de tentarem obter a maior quantidade de evidências, mas causando a menor quantidade possível de Caçadas. Nas palavras do filósofo americano Eugene Thacker:

nós recebemos mais do que esperávamos, à medida em que espectros aparecem em nossas fotos, os mortos aparecem em nossas telas de computador, e aquela fita cassete, bom, você provavelmente não deveria assistir àquilo.

Equipamentos em Phasmophobia. Por MrWhitefolks no DeviantArt

As Caçadas em Phasmophobia são o clímax de terror da partida. O fantasma, irritado com os intrusos que desejam o sondar e o captar, sai em busca dos jogadores para eliminá-los — assassinar seus personagens e consequentemente encerrar sua participação na partida. O ponto de referência muda, e agora é o fantasma quem busca ativamente os jogadores, tenta alcançá-los, enquanto os jogadores, assim como o fantasma anteriormente, tentam se esconder e se manterem indetectáveis.

Os signos que marcam o início de uma Caçada são quase todos mediados por tecnologia. A porta se fecha, luzes apagam, lanternas falham, equipamentos dão sinais sem sentido, TVs ligam sozinhas, alarmes disparam, a comunicação entre jogadores é cortada, substituída por estática. Os equipamentos, antes extensões dos jogadores, se tornam agora seus inimigos, instrumentos para a construção do terror e evidências de uma situação aterrorizante. O mal funcionamento da tecnologia é o principal recurso usado pelo jogo para causar medo. A dependência dos equipamentos por parte dos jogadores é tão grande que o elemento do terror se instaura uma vez que não se pode mais confiar neles. Tecnofilia se transforma em tecnofobia. Durante a Caçada, jogadores tentam se livrar o mais rápido possível de alguns dos equipamentos, pois luzes e sons podem lhe trair, revelando sua posição ao fantasma. A comunicação entre jogadores, no momento em que mais precisariam dela, é cortada, substituída por estática. Um vazio de comunicação que se faz presente. Thacker, em seu ensaio sobre Dark Media, discute sobre o conceito de excomunicação:

a excomunicação é um movimento duplo no qual o imperativo comunicacional é expresso, mas é expresso como a impossibilidade da comunicação. Na excomunicação, a própria possibilidade da comunicação é anulada. […] é a mensagem que diz ‘não haverão mais mensagens’.

O trecho acima pode descrever perfeitamente a sensação das Caçadas em Phasmophobia. O som de estática no rádio não deixa de ser mensagem, mas é uma mensagem que, em si, comunica a impossibilidade da comunicação. Aí reside o sentimento de medo, a constatação da excomunicação. Para o autor, os equipamentos em Phasmophobia poderiam ser facilmente descritos como dark media, aquele tipo de mídia que media o imediável, transcende a barreira dos sentidos. Para Flusser, poderiam ser como caixas-pretas, com um funcionamento tecno-místico que está além do nosso entendimento.

Em seu texto sobre o filme Host, os comunicólogos Laura Cánepa e Rogério Ferraraz traçam a relação do terror com a mídia até o século XVIII. Obras seminais como Frankenstein, de Mary Shelley, e Drácula, de Bram Stoker, exibem inúmeras mídias, assombradas ou não, ao longo de suas narrativas.

O sobrenatural e a tecnologia de ponta podem parecer, à princípio, universos opostos, sem muita sobreposição. A história nos mostra, porém, que sempre tentamos explorar o além através de meios. Seja através da prática de spirit photography, fenômenos de voz eletrônica ou mesmo cartas psicografadas. Fantasmas e espíritos parecem ter assombrado cada uma das mídias criadas pelos humanos. À medida em que nossas realidades parecem ser cada vez mais mediadas, parece natural que nossas histórias sobre fantasmas reflitam nosso medo de perder contato com a natureza objetiva ao nosso redor. Alternativamente, parece sintomático que o medo em Phasmophobia pareça ser causado justamente por alterações nesse processo de mediação da realidade, alterações essas causadas por fontes sobrenaturais, além de nosso entendimento. O medo da mídia assombrada está mais que presente em Phasmophobia, ele parece uma temática central do jogo. Para encerrar, trago novamente Cánepa e Ferraraz:

um tema recorrente nas discussões o gênero horror é uma espécie de afinidade sobrenatural entre as tecnologias de comunicação (das mais rudimentares às mais avançadas) e os seres mágicos ou provenientes do mundo espiritual, o que leva Mark Olivier a afirmar, ironicamente, que, “ao que parece, fantasmas sempre tiveram uma queda por engenhocas”.

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