Umbrella Academy: Até que ponto valores estruturalistas conseguem se esconder sob o guarda-chuva progressista.

Anderson Martins
LENS
Published in
7 min readJun 3, 2021

--

Enquanto o protagonista padrão da "era de ouro da televisão" pode ser enxergado como o homem branco, pode-se comentar que recentemente pautas de minoria vem ganhando espaço no protagonismo da televisão moderna e da era do streaming. Todavia, qual o alcance dessa desconstrução? Mesmo com empresas como HBO e Netflix produzindo séries a priori progressistas (Euphoria, Sex Education, Umbrella Academy, Sabrina), é de se pensar que existem estruturas da indústria cultural e do capitalismo que são imutáveis, cravadas como diamante no crux de qualquer produto feito para vender em massa.

Christian Metz (1974) e Robert McKee (2009) são bons nomes para se apontar ao trazer uma conversa de subtexto para o audiovisual; Em suas pesquisas, ambos respectivamente apontam que relações de significante e significado, folha e estilo geram uma linguagem por trás dos comportamentos organizados em tela (sejam eles visuais ou narrativos), esta terceira linguagem contém um conteúdo que será acessado de maneira consciente ou inconsciente. Assim, em um âmbito material e concreto, tais informações, motifs e narrativas apenas implícitas e sutis, são chamadas de subtexto.

Enquanto o uso de subtexto pode ser visual, retórico (narrativo) ou apenas implícito.

Texto significa a superfície sensorial de uma obra de arte. No filme, são as
imagens na tela e a trilha sonora de diálogos, músicas e sons efeitos. O que vemos. O que ouvimos. O que as pessoas dizem. O que as pessoas fazem. O subtexto é a vida abaixo dessa superfície — pensamentos e sentimentos ambos conhecidos e desconhecidos, escondidos pelo comportamento.

Nada é o que parece. Este princípio exige a consciência constante do escritor da duplicidade da vida […] — Robert Mckee.

Os subtextos vem sendo usados faz muito tempo em qualquer tipo de obra que carrega narrativa, é sem duvidas uma arma clássica (porém eficaz) de storytelling. Antes de adentrarmos nos subtextos de Umbrella Academy, existe uma conversa necessária a ser tida aqui sobre representatividade e determinação ideológica de venda:

Na cultura popular, existem novas necessidades econômicas de como vender o produto para o maior número possível de pessoas, para vender histórias em quadrinhos ou ingressos de cinema para mulheres, vem sendo necessário que tais produtos passem a incluir narrativas atraentes também para mulheres, com quem se identificar, idealizar e representar. “Hollywood” (não como local mas sim como entidade capital) vem fazendo seu dever de casa em inserir pautas e discussões de minorias em produtos para uma audiência alternativa — que muitas vezes tem mais poder de consumo que o mainstream.

Veja por exemplo, o sucesso de Black Panther que demonstrou que um filme feito de negros para negros, mesmo produzido por uma empresa extremamente capital historicamente conservadora, pode ser alavancado ao sucesso mainstream.

Ponto sendo, toda essa relação ideológica narrativa e econômica é bem visível na adaptação de Umbrella Academy, que mesmo existindo de fato um quadrinho alternativo, passou por mudanças de enquadramento — que a propósito, são muito bem vindas — para representar um público maior, mais jovem e mais diverso.

Enquanto a série em si tem um ótimo roteiro, produção e direção, ecos de subtextos estruturais e verdadeiramente conservadores podem ter um gosto amargo debaixo do guarda chuva progressivo que ela levanta. Inicialmente, os personagens LGBTs Vanya e Klaus, apesar de terem suas próprias narrativas relevantes, em uma forma macro acabam sempre sendo desrespeitados ou não levados a sério pelos irmãos na série. Visto Klaus e Vanya serem essencialmente alguns dos irmãos mais fortes da família, ambos terem uma percepção extremamente distorcida e chula no universo da narrativa de Umbrella Academy é algo à se comentar :

Você não é bom o bastante.

Klaus sendo, quase sempre, o bobo da corte e irresponsável. Frequentemente sendo mandado calar a boca pelos irmãos mais “sérios”: Diego, Luther e Five (para surpresa de ninguém, héteros e masculinos).

Em dado ponto, Klaus literalmente implora aos irmãos que notem que seus poderes são uteis e não é ouvido. Eventualmente Klaus acaba tendo que voltar ao alcoolismo e as drogas para conseguir sobreviver os fantasmas (literalmente) que lhe assombram, algo recorrente na série.

Esse subtexto, retórico, é simplesmente familiar demais para não ser comentado aqui: um homem LGBT, constantemente sendo dito que ele é fraco, visto como um caso perdido e simplesmente não bom o suficiente indo se entorpecer para esvaziar a mente por estar “perdido” e atormentado por fantasmas do passado.

Seja sofrendo bullying, forçados a ficar no armário ou sofrendo discriminação, todos estes tipos de opressão se tornam fantasmas no passado de qualquer LGBT e este subtexto é rapidamente processado ao assistir Umbrella Academy, coisa que se torna dolorosamente familiar ao ver Klaus sendo tratado desta maneira pela série.

Enquanto eu entenda que Klaus como personagem é problemático e irresponsável por motivos estabelecidos na trama ou enquanto eu entenda que seu plot é essencialmente uma história de amor, é de se argumentar que quando estes motifs conservadores se tornam frequentes e se alastram para outras minorias na série torna-se necessário problematizar qual comentário essas decisões narrativas carregam consigo dentro de um subtexto palpável na narrativa.

Acima de coincidências

Vanya, por sua vez, na primeira temporada sofre de uma constante crise de auto aceitação (não sexual, mas de identidade). Sendo a outsider da família, coincidentemente não expressando sua feminilidade (em comparação a Alisson, a outra irmã da família), é constantemente silenciada e radicalizada pelos irmãos. Não tenho propriedade para dizer se Vanya era bisexual de início ou se isso foi algo que nasceu no processo da segunda temporada, mas quando os dois personagens que operam em áreas de minoria são marginalizados constantemente na série, precisamos prestar atenção em que subtexto essa escrita favorece. Não somos bons o suficiente, não somos levados a sério o suficiente mesmo em um ambiente que nos convida a entrar.

Season 2 : Desenvolvimento?

Especialmente na segunda temporada, a série apresenta um contraponto de relação-família para todos os personagens, adentrando em outro subtexto que o capitalismo neoliberal adora se agarrar, que é o de família como base necessária para a vivência. Afinal, em nossa realidade pós modernista, flexível e em constante mudança, a ideologia estrutural precisa da família como uma fonte de valores de dependência tradicional (obrigação, confiabilidade, comprometimento).

Vanya tem uma breve nova chance na vida e acaba envolvida em um romance lésbico, que não se afasta muito do chão a medida que a série continua, de uma forma indiscutivelmente clichê quando Eva (o interesse amoroso) é pega tendo que escolher entre sua família e Vanya. O final aqui é “feliz” quando Carl (o marido) é revelado ser abusivo e Eva de fato deixa o seu casamento.

Ainda na segunda temporada, a personagem de Alisson tem um papel importante na discussão de raça e opressão nos anos 60:

Saindo da primeira temporada sem voz em um plano físico, e caindo em uma época temporal onde a minoria preta não tinha voz em um plano social. Porém, para a não-surpresa narrativa de ninguém, sua personagem é sugada (novamente) por um romance, tendo uma contraparte masculina (novamente) crucial para seu desenvolvimento.

Klaus, por sua vez, têm sua vida posta de cabeça pra baixo e se encontra comandando um culto religioso. Coisa que não dura muito pois Klaus encontra um antigo amor e regressa aos seus impulsos auto degenerativos ao ser rejeitado enquanto tentava ajudar o interesse amoroso na hora errada.

Meu ponto sendo, estamos em 2020, um romance lgbt não tem que vir de uma estrutura infeliz e abusiva para ser validado. Alisson é uma personagens de muitas facetas, uma mãe que passou por muitas coisas e tem muito a explorar e dizer, é hora desta personagem ter seu próprio desenvolvimento e não orbitar sempre ao redor de uma figura masculina. Klaus segue na mesma estaca que começou a série, marginalizado. É hora de tratar estes personagens como reais e merecedores de serem desenvolvidos com honra e dignidade própria. Apesar da série ter tons de finais felizes, seus personagens (especialmente Klaus e Vanya) não são salvos do subtexto constante de serem destinados a sofrer pela sua identidade pessoal.

Umbrella academy é uma série que levanta a bandeira das minorias e tem orgulho de seus personagens e tramas modernos, porém, debaixo do guarda chuva, os subtextos estruturalistas fomentam pautas conservadoras; pelo menos em seu tratamento e escrita.

Isso se torna ainda mais problemático ao se notar que praticamente nenhuma destas mudanças existem no material de origem. Alisson não é preta, Vanya não é bissexual, Klaus é extremamente bem resolvido, poderoso e levado a sério. Qual o motivo de que, em sua adaptação, estas personalidades e motifs claramente sociais foram adicionados na trama coincidentemente nas ovelhas negras da família? Por fim, por quê, após uma segunda temporada ainda não vemos nenhum sinal de desenvolvimento pessoal e digno para cada?

Não me entenda mal, não penso que Umbrella não tenha seus méritos no progresso de aceitação e tem arcos muito bons. Contudo, o uso de pautas importantes, representação e diversificação muitas vezes são artimanhas para venda e propaganda capital, estrutural e conservadora, que a série — consciente ou inconscientemente — apresenta de maneira sutil, na organização de suas narrativas em tela.

Afinal de contas, Umbrella Academy ainda é uma série feita por uma empresa para vender. É de nosso papel e dever por em prova e desconstruir como os subtextos se comportam e são implícitos nestes produtos.

Referências

MCKEE, Robert. Story. Curitiba: Arte e Letra, 2006.

--

--

Anderson Martins
LENS

Writes about Media Studies, thinks about visual arts.