A fome e a teimosia de Cláudia Belém

Leon Lucius
Leon Lucius
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9 min readFeb 2, 2017

É preciso ter fome para se dar bem no jornalismo. Guiada por essa visão, Cláudia Belém construiu uma sólida carreira. Assim que saiu da faculdade de Comunicação, começou a trabalhar para O Globo, onde ficou mais de 10 anos. Hoje, ela é dona de uma empresa de assessoria de imprensa especializada na área da cultura e relembra, na entrevista abaixo, a trajetória dentro da redação, a técnica do jornalismo, a fome pela profissão e a teimosia que a fez escolher o que ama.

Você se formou em 1987 e, no mesmo ano, começou a trabalhar n’O Globo. Como foi trabalhar num veículo tão grande tão cedo?

Na verdade, eu comecei como estagiária pelo programa de estágio. Três meses depois, eu fui contratada como “freelancer” e, depois, como repórter.

Então você já conhecia a rotina do veículo?

Sim.

Nesse início, você tinha liberdade para propôr as próprias pautas?

Como estagiária, O Globo era muito rígido e eu só podia acompanhar. Depois, eu entrei por uma porta de entrada que é muito comum nele: o jornal de Bairros. A gente ficava em equipes por bairro e, aí sim, as pautas eram trazidas pelos repórteres. Se você estava em um bairro mais rico, você tinha sempre a sugestão da assessoria de imprensa. Se era um bairro mais pobre, mais simples, você tinha que correr atrás para levantar as pautas.

Como você reconhecia uma boa pauta?

Para reconhecer uma boa pauta, você tem que entender muito bem quem é o seu público-leitor e qual é a política editorial do lugar que você está trabalhando. No caso do jornal de Bairros, o que importava ali era a geolocalização, onde eu estava. Eu estava falando com o público daquele bairro. O que a pessoa buscava ali, quando abria o jornal, era saber sobre a vizinhança dela. No caso de bairros mais pobres, por exemplo, havia um foco muito grande na área de serviços, em ficar ao lado do morador para defender os interesses dele, muito parecido com o que o Bom Dia Rio faz hoje em dia. Nos bairros da Zona Sul, os moradores são menos preocupados porque as suas demandas [de serviços] não são tão grandes. Como sobrava tempo, você tinha mais espaço pra área de cultura.

E uma boa entrevista?

Boa entrevista, para o jornalista, é aquela que tira suas dúvidas, as perguntas que você tem sobre aquilo. É aquela que, antes de você conversar com alguém, você estuda. O certo é você já chegar com informação. O bom jornalista fala com um especialista quase de igual para igual. Quase, né. Ele é um cara que sabe um pouco mais, mas você tem que ser informado. Você não pode chegar e dizer “e então? qual é a boa no momento?”. Não é isso. Você faz a pergunta [sob o seu conhecimento prévio] em cima de situações reais. Uma boa entrevista é a que o entrevistador se preparou antes, estudou a respeito, fez o roteiro, elaborou as perguntas e foi pronto pra lá. Chegando lá, ele não necessariamente segue o roteiro que desenhou. Ao mesmo tempo que ele está muito preparado, ele tem que ter muito jogo de cintura porque ele está lá pela notícia, pela novidade, pelo inédito. Se o cara pega um caminho novo, que você não estava esperando, você larga o seu roteiro e o segue se achar que é um caminho interessante. Muitas vezes o entrevistado faz isso para evitar as perguntas que ele não quer [responder], então, você aproveita o caminho dele e, depois, retoma as suas perguntas.

E para registrar as falas dos entrevistados? Você usava um gravador ou anotava?

Em uma entrevista ping-pong, com muitas perguntas e respostas longas, eu gravava. Mas eu também anotava porque o gravador podia quebrar e, quando você anota, você vai gerando perguntas novas e vai guardando o roteiro da entrevista na sua cabeça, separando o que é mais interessante. Eu nunca fui uma pessoa de anotar coisas grandes, mas frases que me pontuavam. Quando eu ia usar somente uma frase da fala de alguém em um texto corrido, eu anotava nomes, dados… Sempre que eu escrevia um nome, eu confirmava. Depois que eu checava tudo, eu anotava só a frase que eu gostei. No trabalho do dia-a-dia, eu não tinha o hábito de usar o gravador. Eu ia com um caderninho e anotava as coisas mais importantes. Como era muita matéria na rua e eu ficava muito em pé, era um caderninho que cabia na mão, duro o suficiente pra eu conseguir escrever e comprido pra não precisar ficar trocando de página toda hora. Por um lado, o gravador te libera para prestar atenção no que a pessoa fala, mas imagina quado você está na rua, apurando 3 ou 4 matérias e tem que escrever para o dia seguinte. Não dá pra você ficar gravando e ouvindo, né? Isso é bom quando você vai fazer algo para uma revista, uma entrevista profunda, longa…

Durante os seus 13 anos no jornal, você passou por diversos cargos. Isso foi importante para manter uma certa vontade de fazer cada vez mais?

Sim, porque se não você engessa, vai ficando chato, vai ficando sem graça. O jornalismo não é o que é notícia, o que é relevante? O mesmo que vale pra ele vale pra sua carreira: bom é você estar fazendo uma coisa que é relevante e nova e estar sempre pronto pra perceber essas oportunidades. Quando ela existe, é interessante. Se não, é, dentro do espaço que você ocupa, não se deixar cair na mesmice e ficar fazendo exatamente a mesma coisa todo dia.

Também no Globo, você ocupou o cargo de editora de cultura. Foi sempre um interesse seu trabalhar nessa área?

Não, eu queria fazer Economia ou Política quando eu entrei na faculdade. Por acaso, caí em cultura e me apaixonei.

No perfil do site da sua empresa, você fala que trabalhar com cultura é uma escolha e uma teimosia. O que significa isso? Qual a dica para exercer um bom trabalho nessa área?

As pessoas não podem achar que trabalhar com cultura é só legal e divertido. Você não pode pensar “vou trabalhar com cultura que deve ser mais leve, o trabalho é menor…”. O bom repórter de Cultura estuda muito. Não adianta você achar que vai conseguir fazer isso dentro da redação fazendo só o seu dia-a-dia. É um trabalho que exige de você e não da empresa onde você trabalha. Você vai chegar em casa, vai ler, pedir pra ir ao ensaio de uma peça, ao set de filmagem… E tem que ter disposição. Eu vejo gente muito nova, de 23 anos, virando pra mim, que estou com quase 50, dizendo que “tá muito cansativo porque eu virei a noite, eu trabalhei”… Acorda! Essa é a nossa Copa do Mundo. Se você não trabalhar no Rock in Rio, vai trabalhar no quê? Se você não vai trabalhar no Festival do Rio, você vai trabalhar no quê? Você quer ser repórter de cinema e vai tirar folga no meio do Festival do Rio? A pessoa tem que dizer “eu quero trabalhar sábado e domingo!, eu quero essa matéria!, me dá essa matéria!”. Na hora que a pessoa perde a fome, ela tá na profissão errada. Jornalismo é fome. Se você não tem fome, não tem vontade de conhecer e de fazer, vai escolher outra coisa.

A gente pode dizer, então, que a teimosia e a fome guiaram o seu trabalho como comunicadora?

Sim. Você tem que ser um pouco teimosa para insistir porque é difícil. No caso, quando eu uso “teimosia”, eu uso para a minha nova vida como empresária. A área de cultura não tem dinheiro. Eu conheço o suficiente outras áreas da comunicação para ganhar dinheiro com elas, mas eu optei pela cultura. Eu sei que escolhi ganhar menos, mas é a coisa que eu amo e que gosto de fazer.

Você saiu do jornal e resolveu ter a sua própria empresa, a Agência Febre. O que te levou a sair?

Na verdade, antes do meu segundo filho nascer, eu tinha decidido que eu não queria mais tempo no jornal porque eu tinha chegado ao meu limite. Eu estava como editora há 6 anos, não via a possibilidade de crescer dentro do jornal e comecei a cair na mesmice. Então, eu fui pensar para onde eu poderia ir. Fiz dois cursos na Faculdade Getúlio Vargas de marketing e saí de licença maternidade. Quando estava acabando, me ligaram e me demitiram, o que foi tudo de bom! Eu e o jornal fizemos um bom acordo, em que ganhei um bom dinheiro e pude ser sócia de uma empresa de assessoria de imprensa que já existia. Fiquei 5 anos lá. Há 10, eu saí e montei uma empresa de assessoria dedicada somente a cultura, que é a Agência Febre, que faz assessoria para empresas e produtos culturais. Nós não trabalhamos com pessoa física.

Na área da Comunicação, qual é a diferença entre ter sua própria empresa e ser empregado de um veículo?

Ser empregado é se enquadrar às necessidades e políticas de um veículo, mas enquanto se está empregado, há um circuito de segurança com benefícios, como o 13º, aviso prévio e multa de FGTS quando é demitido. Ser dono de um negócio é correr o risco de ser jornalista e ter que virar administrador. É pensar no negócio, no cliente, na imagem.É bem diferente do ponto de vista de responsabilidades.

Você acredita que a universidade foi suficiente para o exercício do jornalismo?

Não, mas eu me formei há quase 30 anos e acho que muita coisa mudou. Na parte técnica, a universidade era muito pobre de equipamento, mas naquela época não era tão fundamental. Quando eu entrei n’O Globo, tinha computador só há dois meses! Eu fiz a faculdade na máquina de escrever. Ela não foi suficiente e eu aprendi muita coisa na marra, mas foi importante. Foi importante para minha formação humanística, para a apresentação do mercado de trabalho e para a formação de grupos que pensavam e discutiam políticas na comunicação e na universidade, um espaço que até hoje é muito pobre vindo da instituição, que é mais feito pelos alunos. Mas você não sai pronto.

E para um iniciante: qual você acredita que seriam as diferenças para um recém-formado do ano de 1987 e o de 2015?

Tinha muito menos faculdade de Comunicação. O número de pessoas que eram colocadas no mercado era infinitamente menor do que é hoje. O caminho natural eram as redações de jornal, rádio e TV. Você tinha mais veículos formais de Comunicação e muito mais vagas. Essas vagas fecharam. Hoje você tem muito mais gente, mas também dinamizou o mercado, você tem vagas variadas. Mas se quer ser repórter, você tá fodido.

O que é o jornalismo e a comunicação pra você? Essa visão mudou durante sua carreira?

Mudou um bando de coisa em torno do jornalismo, mas o que ele é não mudou. O jornalista é uma pessoa comprometida com o público final e com dar a notícia mais próxima da verdade àquele público O trabalho do jornalista é, por princípio, limitado, incompleto. Ele nunca será perfeito porque entrega um retrato de um momento. Por mais que ele tente apurar, ele não vai conseguir ver todos os ângulos porque ele tem um prazo de entrega. Se você tem que sentar e escrever, aquele momento é o seu limite e aí você tem que ter na cabeça “eu tenho certeza que não faltou ninguém para entrevistar, que não tem nenhum dado incorreto dentro do que eu pude apurar e que eu estou dizendo o que eu descobri ser mais próximo da verdade possível”. Eu vou escrever para o público final porque o meu compromisso não é com o dono do jornal, não é com anunciante e não é com o cliente do assessor de imprensa.O dia-a-dia mudou: se a pessoa recebe algo no celular, vê um link do jornal, recebe notícia o dia todo via Facebook, ele vai abrir o jornal no dia seguinte pra quê? Se você não trouxer algo que ele não viu até o momento, ele vai ligar no Jornal Nacional pra quê? Então mudou o jeito de fazer, mas tem que se pensar o tempo todo.

E qual conselho você daria para os atuais estudantes de jornalismo ?

Rala! Rala a bunda, cara! Não tem jeito de ser bom se você não ralar. Leia, estude, vá ao cinema, converse com amigos e esteja aberto para ouvir o outro. Não ache que você já sabe tudo, é a pior coisa que tem. O jornalista é o cara que tem que aprender o tempo inteiro. Na hora em que você chegar e disser “não quero mais fazer isso porque eu já aprendi tudo”, esqueça, pois o que está errado está em você, não no lugar em que você está.

A entrevista foi produzida para a disciplina Teorias e Técnicas de Reportagem do curso de Comunicação Social (habilitação em Jornalismo) da UFF/RJ.

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Leon Lucius
Leon Lucius

Jornalista em formação | Repórter e Assessor de Imprensa na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj)