Cultura e resistência

Leon Lucius
Leon Lucius
Published in
6 min readJul 22, 2018

Quinta edição do Diploma Heloneida Studart irá contemplar, pela primeira vez, representações quilombolas por sua atuações culturais

O músico Ronaldo Santos, quilombola e ex-secretário de Cultura de Paraty/RJ (Reprodução/Facebook)

Há cerca 20 km do Centro de Paraty, no litoral sul do estado, o Quilombo Campinho da Independência, rodeado por cachoeiras e pela flora e fauna da Mata Atlântica, é carregado de muita história: no final do século XIX, com o declínio do regime escravocrata, três mulheres escravas deram início a uma comunidade matriarcal. Séculos depois, nasceu e cresceu no local o músico Ronaldo Santos, 40, que hoje integra a Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq). Ao lado de Marilda Souza, ele está entre as primeiras representações de um quilombo a receber o Diploma Heloneida Studart de Cultura, reconhecimento dado pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aos atores e instituições fluminenses que contribuem para o desenvolvimento cultural.

“Eu sou mais um soldado na luta quilombola, mas me deixa muito honrado ser agraciado. Somos de um estado que não reconhece a vida rural e é preciso colocar essas comunidades na agenda do Rio”, agradeceu Santos, que, final da década de 1990 retomou a associação de moradores da comunidade, que vinha tentando se estruturar desde a década de 1970.

Na comunidade, surgiu o primeiro grupo de hiphop negro e rural do país (Reprodução/Internet)

A partir de então, ela foi reconhecida oficialmente como remanescente de quilombo (a primeira no estado) e passaram a ser oferecidas atividades culturais tradicionais, como a roda de Jongo, a capoeira, oficinas de artesanato e percussão e a contação de histórias dos antepassados. Além disso, Santos se destacou pela criação, na comunidade, do primeiro grupo de hiphop negro e rural do Brasil. “Com a titulação do quilombo, houve uma invasão de guias turísticos. O que era um problema vimos como uma potência e, hoje, temos consolidado um turismo de base comunitária”, contou o quilombola, que chegou a assumir a Secretaria de Cultura de Paraty durante pouco mais de um ano.

Para Santos, o Campinho da Independência é um marco de resistência e luta pelo reconhecimento territorial. Hoje, a comunidade de 150 famílias ocupa apenas 20% do terreno que tradicionalmente lhes seria de direito, mas as atividades que são desenvolvidas na região já começam a traçar novas realidades entre os moradores. “A nossa produtividade é restrita e a maioria de nós ainda trabalha fora daqui, mas é grande o número de pessoas que têm a sua renda baseada majoritariamente ou totalmente no quilombo”, apontou. “Além disso, houve um aumento de autoestima entre nós. Quando eu era criança, lembro que ficava na defensiva ao me deparar com o racismo e, agora, a gente vê a criançada ir para a cidade se sentindo empoderada, levantando a cabeça ao andar na rua. Isso não se quantifica”, disse orgulhoso.

Oficinas de confecção de bonecas e cestaria promovidas no quilombo (Reprodução/Internet)

O deputado Zaqueu Teixeira (PSB), que preside a Comissão de Cultura da Casa, grupo responsável pela escolha dos 39 agraciados com o diploma este ano, vê a premiação de Santos como um reflexo da pluralidade regional e temática da ação. Entre os contemplados de todas as áreas do estado, projetos de comunidades, grupos de cultura tradicional africana, chefes de cozinha, músicos, atores e muito mais . “Essas escolhas permitem que o prêmio possa ser representativo e que as cidades possam se sentir valorizadas por ele”, explicou. O Diploma Heloneida Studart de Cultura está previsto para ser entregue no dia 17 de junho, às 19h, no Teatro Carlos Gomes, no Centro da capital.

Cultura que dá gosto

E quem disse que gastronomia não é cultura? Desde 2015, a Lei 7.180, do deputado Zaqueu, reconhece o setor como parte da cultura fluminense, medida que reflete na seleção dos concorrentes ao diploma. “A culinária é uma expressão cultural muito forte e há um trabalho para que ela seja cada vez mais reconhecida como tal. O aumento no número de inscritos do setor reflete esse engajamento”, explicou o deputado Eliomar Coelho (PSol), integrante da comissão que participou do processo de escolha dos vitoriosos.

David Bispo é bicampeão regional do concurso Comida di Buteco (Reprodução/Facebook)

Entre os contemplados do setor, está o Bar do David, na comunidade Chapéu Mangueira, no Leme, cujos sabores dos pratos tradicionais da favela já atraíram o interesse da imprensa internacional e ganharam o paladar dos votantes do concurso Comida di Buteco. O bar foi bicampeão fluminense e vice na categoria nacional. Para David Bispo,46, criador do boteco e filho de cozinheira, o gosto da vitória foi ainda melhor por conta da origem de sua culinária. “Foi o primeiro bar de favela a ser premiado em um concurso de gastronomia. No primeiro momento, pensava não estar à altura dos competidores, mas foi buscando a cultura do morro que houve esse reconhecimento”, contou o chefe.

A vida na comunidade é intrínseca à trajetória pessoal e profissional de Bispo. Tendo trabalhado com a pesca e como jurado da série A do carnaval durante quatro edições, David vê a importância da luta da favela por reconhecimento, ensinamento passado por seu pai, que foi o líder comunitário responsável pelo registro da Chapéu Mangueira. “Ele lutou para que nós ficássemos aqui e eu consegui projetar o nome deste lugar para o mundo inteiro”, disse.

Segundo o cozinheiro, seu pai teve uma ligação muito forte com a ex-deputada Heloneida Studart, que teve seu trabalho na área cultural reconhecido através da criação do diploma. “Ela contou com o apoio dele para sua reeleição, então fico muito feliz por saber que esse prêmio leva o nome dela. Estou muito agradecido por ter sido escolhido e vou levar a força da gastronomia da favela muito mais à frente”, completou.

Mas quem foi Heloneida?

Como deputada e escritora, Heloneida Studart trabalhava pautas feministas (Acervo/OGlobo)

Heloneida Studart foi seis vezes deputada estadual, destacando-se por sua atuação feminista. Na Casa, participou, durante a Constituinte, do chamado “Lobby do batom”, para a inclusão dos direitos trabalhistas para a mulher, incluindo os 120 dias de licença-maternidade. Antes de falecer, em 2007, ela foi nomeada diretora do Centro Cultural da Alerj e do Fórum de Desenvolvimento Estratégico.

Cearense, Helô, como chamavam os mais próximos, veio para o Rio aos 16 anos, atuando como jornalista e escritora. O Correio da Manhã, o Diário de Notícias e a revista Manchete foram alguns dos veículos em que ela publicou. Studart também deixou uma série de obras literárias, como romances, ensaios, crônicas epeças teatrais. “A escrita dela é um ato político que desafiou uma cultura que se construiu a partir do ponto de vista normativo masculino, hétero, branco e elitizado”, defendeu a professora Ioneide Piffano, cuja tese do doutorado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora é sobre a chamada “Trilogia da Tortura”, livros fictícios de Heloneida sobre o regime ditatorial no Brasil, que a manteve presa em 1966 por oposição. “Conceder um prêmio com seu nome é manter vivo seu projeto de dar voz àqueles que não têm o direito de se denominar sujeitos e criadores de suas próprias histórias”.

*Este texto foi publicado em versão reduzida no Jornal da Alerj (edição 336)

--

--

Leon Lucius
Leon Lucius

Jornalista em formação | Repórter e Assessor de Imprensa na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj)