Vinicius

Leon Lucius
Leon Lucius
Published in
3 min readFeb 2, 2017

As quatro faixas da rua da praia de Icaraí começavam a ficar menos tumultuadas. As pessoas, que minutos antes faziam os desejos para o recém-nascido 2015, iam em direção às ruas paralelas. A multidão vestida de branco se arrastava para casa entre uma cacofonia feita de música, passos, vozes e latinhas sendo jogadas no chão. Esse último som era do interesse de Vinícius.

Foto: Google Imagens

Vinícius é morador de rua, catador, negro e jovem. A sua idade ele não diz, mas sua aparência, seus gestos, sua fala e seu olhar são de alguém que sequer passou dos 25 anos. Ele conta que costuma ficar por ali mesmo, na praça em que conversávamos naquele Revéillon, ou sob a marquise do antigo Cinema Icaraí. Vinícius é gay, mas não se estende falando sobre isso ou qualquer outra coisa sobre si. Ele gosta mesmo de falar sobre os outros.

— E aí, Isabella, como é que tá? É seu namorado? — ele pergunta à minha amiga, que já o conhecia, se referindo a mim. O papo é descomprometido, mas denota um interesse genuíno. Isabella conta da vida, do colégio e dos amigos, enquanto se distrai comigo acompanhando Vinícius naquilo que pra ele era muito mais que uma distração: amassar as latinhas que ele tinha catado. As sacolas que ele já tinha juntado o trariam alguns trocados, ele conta, que seriam suficientes para comer durante uma semana. Além de se sustentar, Vinícius tinha uma cadela (que morreu há pouco tempo, eu saberia depois). O nome dela era Vitória.

Mesmo evitando falar de si mesmo, Vinícius deixa traços de sua identidade. Muito já fora tirado e negado dele, mas o direito de crer é algo que ainda permanece. Mais cedo naquele dia, ele tinha gasto um pouco do dinheiro que ainda o restava para comprar flores, um presente para sua mãe Iemanjá. Queria jogá-las no mar, pedir e agradecer, e assim o fez.

Mas o que teria ele a agradecer, afinal? Talvez pela sobriedade. Vinícius deixa claro que não usa drogas, o que na situação de morador de rua sem nenhuma orientação sobre o uso delas, poderia permitir que fossem arrancados os últimos direitos que ainda lhe restam.

— É claro que de vez em quando eu fumo um baseado, mas isso não é nada, né — ele diz, contando que “muita gente doente” usa maconha para se sentir melhor e até mesmo se curar. Em algum momento da história escondida de Vinícius, ele tinha alcançado uma sobriedade que muita gente que curtia aquele Revéillon sequer estava perto de perceber.

Depois de uma hora de conversa, deixamos Vinícius com um abraço, um saco de pipoca, suas latinhas e sua história que ele guarda em uma penumbra. Ah, e com a Vitória, a cadela.

Até hoje, ele continua por Icaraí, fazendo parte de uma cacofonia que ultrapassa o som. Negro, catador e morador de rua, ele não é só mais um que “destoa” da marjoritária população branca das classes A e B que vive nos grandes prédios do bairro. Vinícius não é só um, são muitos que todos os dias são ignorados na rua e que, quando vistos, são não mais do que um defeito na estética do bairro.

*Vinícius é um nome fictício.

--

--

Leon Lucius
Leon Lucius

Jornalista em formação | Repórter e Assessor de Imprensa na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj)