Capitão Rodrigo 2.0

Existe espaço para a cultura do Prata no questionador século XXI?

Leonardo Ritta
Leonardo Ritta
4 min readOct 18, 2019

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Como qualquer lugar do mundo, o Rio Grande do Sul tem manifestações culturais bastante particulares. Algumas delas, envolvendo a cultura gaúcha, parecem ter mais afinidade com países vizinhos do que com costumes do próprio Brasil. Pautados por razões de ocupação e de vocação econômica, acabamos nos aproximando mais de quem produzia como nós.

Foto: Eduardo Tavares

No Século XX, tivemos um aprofundamento da organização em torno dos costumes do Rio Grande rural. É natural que ocorresse, justamente porque apenas em 1940 houve mais gente nas cidades do que no campo por aqui. Some-se a isso um aumento considerável na escolaridade média e estava feita a receita para valorização daquilo que se construiu aqui.

Já mais para a virada do século XXI, com um aprofundamento nas décadas seguintes, nota-se uma acentuação no nível de escolaridade, especialmente no acesso ao Ensino Superior. Naturalmente, antigas estruturas sociais começaram a ser questionadas. Esta é a pavimentação dum caminho sem volta: é importante perguntar se o que sempre foi feito continua válido, cuidando para não se julgar distintas situações sob o ponto de vista pessoal.

O que isso tem a ver com a cultura gaúcha? Tudo. Há um movimento crescente para se descredibilizar totalmente a maiúscula história do Rio Grande do Sul, principalmente questionando-se o papel do gaúcho em si. As principais perguntas que eu vejo surgirem são relacionadas à comemoração duma guerra perdida e de questões envolvendo o machismo, o racismo e a homofobia envolvidos no gauchismo. Como são tempos de transição, em que, pela primeira vez, são questionadas abertamente — e com muitas vozes — estruturas centenárias, creio que há uma série de reflexões que devem ser feitas, tanto para entendermos as bases de nossa origem cultural quanto para não cairmos numa hipocrisia comprometedora.

Em relação ao culto à Revolução Farroupilha (1835–1845), cujo resultado foi um retumbante fracasso para o Estado, deve-se compreender que este momento histórico foi escolhido por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa porque era necessário escolher um ponto de partida. Para tanto, nada mais emblemático do que um momento em que o estado deixou de ser uma província para ser uma República. Questionem-se todos os problemas dessa escolha, questionem-se todos os problemas desse rascunho de República, mas é inquestionável que a criação do mito do gaúcho passa, necessariamente, por algum ponto de inflexão na História. Questione-se, principalmente, o caráter elitista da rebelião, encabeçada por grandes estancieiros e proprietários de charqueadas.

O gaúcho dos séculos passados possivelmente era racista, machista e homofóbico. O gaúcho do século XXI continua, em grande parte, sendo. Teremos para sempre, manchando a história rio-grandense, o Massacre de Porongos. Nenhuma cultura deve ser enaltecida por suas características propagadoras de ódio.

Porém acredito que existe uma reflexão muito oportuna para fazermos neste tema. Quantas viagens aos confins da terra nós fazemos para ver culturas muito diferentes das nossas? Quantos livros lemos para buscar conhecimentos e costumes alheios aos nossos? Será que nós, do alto da nossa sabedoria, não estamos sendo minimamente incoerentes quando vamos à Bolívia e tiramos lindas fotos com cholas (este já um termo bastante pejorativo) e com homens em trajes típicos? Elas pertencem a uma sociedade mais igualitária do que a nossa, sofrem de menos misoginia, menos agressão por parte desses homens? Não trago estes questionamentos para apontar culpados, muito menos para “passar o pano” nos problemas conjunturais que existem no gauchismo. Pergunto porque temos que nos posicionar e lembrar que, muitas vezes, damos ouvidos a culturas lindas, muito embora saibamos que há problemas enormes naquela sociedade. Como existem em tantas outras. Por que, então, há tanta dificuldade em aceitar a cultura gaúcha como uma cultura rica, complexa, de muitas influências? Uma cultura que, apesar de todos os mesmos problemas estruturais, é linda? Na linda colcha de retalhos que forma a América Latina, nossa cultura é rica e deve, sim, ser lembrada e respeitada.

Foto: Vitória Victorino.

Temos mais um fator complicador nessa equação. Se, numa comemoração de Semana Farroupilha, vemos um sem fim de homens e de mulheres aparentemente “fantasiados” de gaúcho, temos que considerar que estes trajes ainda são parte da realidade e do dia-a-dia de muita gente. Gente, inclusive, que contribui para uma parcela grande do PIB do Estado e para as nossas exportações. A crítica a essa “fantasia” me é estranha, ao mesmo tempo que entendo a razão. Chamam de fantasia justamente porque ainda há muita gente que usa botas e bombachas surradas para trabalhar. Estamos lidando com uma cultura que tem muito de passado e muito de presente. Não se vê muito problema em frequentar uma Oktoberfest de lederhosen. Por que veríamos problema em frequentar um baile em pilchas domingueiras?

Uma cultura é difícil de matar. O folklore permeia costumes, hábitos e tradições. O futuro do gauchismo vem, com certeza, com questionamentos históricos e estruturais, que vão humanizar e não relativizar os costumes gaúchos. Questionemos tudo de ruim que herdamos, exaltemos e procuremos entender tudo de bom que nos foi entregue. Talvez possamos pegar esse memorial atávico de um heroísmo rocambolesco e transformá-lo numa exaltação do gaúcho, meio gauche, personagem simples, sem posses, mas de espírito livre. Homem que não conheceu fronteira, que não foi santo mas que não foi demônio. Quem sabe ensinemos para os que vêm depois de nós que povo que não tem virtude acaba por escravizar.

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Leonardo Ritta
Leonardo Ritta

Para escrever bem, é preciso ter a coragem de escrever mal.