Davos cirandeira

O Fórum Econômico Mundial troca de roupa

Leonardo Ritta
Leonardo Ritta
4 min readJan 27, 2020

--

Desde 1971, os janeiros têm sido reservados para o Fórum Econômico Mundial (FEM) em Davos. Os atores mais influentes do mundo — políticos, empresários, acadêmicos, ativistas e outros ilustres — se encastelam naquela Gramado sem grife para debater temas pertinentes à época.

Não parece o cenário ideal para debater o mundo desigual? Imagem: REUTERS/Arnd Wiegmann

O evento é guiado por um manifesto, revelado antes da realização dos encontros. O primeiro deles, de 1973, deixa claro quem é bem-vindo:

A. O propósito da gestão profissional é servir clientes, acionistas, trabalhadores e empregados, bem como sociedades, e harmonizar os diferentes interesses das partes interessadas (tradução livre)

Os demais pontos do manifesto claramente têm uma orientação de cima para baixo, focando nos resultados das firmas e somente depois se preocupando, numa passagem quase protocolar, com empregados e a sociedade, relegados a um papel secundário. Seria injusto julgar o manifesto da década de 70 com os olhos de hoje, de modo que apenas aponto que era claro o posicionamento da organização. Não é por acaso que foi lançado como ‘Simpósio Europeu de Gestão’ e somente depois virou FEM.

O fato é que 2020 chegou a galope como um cavaleiro do apocalipse. Guerra comercial, estremecimento no Oriente Médio maior do que o normal, abalo das estruturas multilaterais, nacionalismo escalando, taxas de crescimento arrefecendo. No cenário de financeirização e de profissionalização da gestão que vem se construindo desde os anos 80, o FEM deu um passo atrás. Ou à frente.

Esse ano, quem tinha bala na agulha para sentar nas confortáveis cadeiras do evento ouviu não somente o inglês impecável de Guedes, mas também as ideias pitorescas de Trump e as demandas de Greta Thunberg, pirralha do ano.

O FEM poderia continuar ouvindo apenas grandes líderes e pensando majoritariamente em acionistas, investimentos e crescimento. Mas parece que, esse ano, deu uma guinada estratégica. O Manifesto de 2020 começa com a seguinte pedrada:

A. O propósito da firma é engajar todas as partes interessadas na criação de valores compartilhados e sustentáveis. Ao criar tais valores, uma companhia não serve apenas aos acionistas, mas a todas partes interessadas — empregados, clientes, fornecedores, comunidades locais e sociedade como um todo. O melhor jeito de entender e harmonizar interesses divergentes de todas as partes é através de um comprometimento compartilhado com políticas e decisões que fortaleçam a prosperidade duma companhia em longo prazo (tradução livre)

Trazer o foco para outros fatores além da companhia, expandindo seus propósitos e encaixando-os numa lógica multidimensional, diz muito. O Fórum propõe um tipo melhor de capitalismo, deixando implícito que acredita no esgotamento do modelo antigo. Qualquer relação dessa crença com as taxas de crescimento mais modestas não é merca coincidência.

A programação do evento (healthy futures, how to save the planet, tech for good, society & future of work, beyond geopolitics, fairer economies e better business) já aponta para uma direção mais diversa, no que parece tentar pescar millenials sem deixar boomers de cabelo em pé. Tarefa difícil.

É claro que pensar um novo capitalismo é bom. Mais do que isso: é obrigatório. Mas pode ser que esses mesmos players estejam simplesmente trocando de roupa, adaptando-se à nova realidade onde as pessoas (que consomem) fazem perguntas cada vez mais difíceis. E mais: cada vez mais pessoas ganham condições de fazer perguntas. Fruto (ou efeito colateral) do próprio capitalismo também. Não é nenhuma teoria da conspiração. Eles não são os inimigos da humanidade. É só como as coisas ainda estão organizadas. O fantasma do socialismo ainda assombra os banqueiros que frequentam o evento, Guedes culpou os pobres pelas mudanças climáticas. Talvez a nova roupa do FEM esteja apenas cobrindo a antiga.

Se o FEM, por um breve momento, tenta se parecer como uma encenação de terno e gravata do Fórum Social Mundial, começando a permitir debates que antes não chegavam nem ao segundo escalão dos participantes, não é por benevolência. É porque os mercados já estão sentindo a falta de fôlego. Aos poucos, parecem se dar conta de que vão precisar alavancar uma grande parcela da população dos níveis mais sombrios de pobreza para fazer o mundo continuar girando. Deve haver, lá no fundo da consciência de alguns, uma incipiente consciência social e ambiental, mas ainda acho que o maior vetor seja a retomada de crescimento. Afinal, se fôssemos colocar todo o planeta na lógica de consumo das grandes e médias economias, faltaria planeta.

As externalidades positivas podem ser boas. Se houver, de fato, preocupação com crescimento sustentável e menos desigual, mais gente tem chance de ter uma chance. Isso é fundamental, e eu não conheço alternativa sustentável e factível além dessa. Quem souber que ganhe o Nobel. Aliás, quem ganhou o Nobel está se preocupando com isso.

O FEM parece o aluno de economia que conseguiu estágio numa corretora de valores, foi de terno pra aula por dois semestres e depois foi demitido. Sentindo o cutuco e olhando um lado mais, digamos, desprendido da vida, trocou a fatiota pelo chinelo. Vamos ver se o aluno se engaja de fato numa atividade mais inclusiva ou se está pagando de humildão pra se enturmar.

Aposto na segunda opção.

--

--

Leonardo Ritta
Leonardo Ritta

Para escrever bem, é preciso ter a coragem de escrever mal.