Livros que mudaram tudo

Quando uma leitura vira encruzilhada

Leonardo Ritta
Leonardo Ritta
8 min readFeb 17, 2020

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Tem leituras que fazem toda a diferença na vida da gente. Vou compartilhar algumas que foram fundamentais para solidificar meus hábitos de leitor e também para me ajudar a começar a entender as coisas. Eu separo, grosso modo, minhas leituras em dois grupos:

Livros para entender as pessoas

Romances bem escritos são um prato cheio para entender como funcionam as pessoas e como nós nos relacionamos. Os Irmãos Karamazov, por exemplo, mostram as entranhas das entranhas de personagens que são muito parecidos conosco. Como o mundo é feito por pessoas, ler um romance com uma boa montagem dos personagens é um convite a entender, ao longo do tempo, como as pessoas se comportam. Mais do que isso, é um convite a entender que, mesmo com o passar dos anos, a essência das pessoas não muda tanto quanto eu imaginava.

Livros para entender o mundo

Nesses livros, é como se eu compilasse tudo que vi sobre as pessoas, utilizando informações novas como elemento ligante. Casa Grande e Senzala, por exemplo, me abriu as cortinas de como o Brasil foi moldado. Nesse tipo de leitura, eu busco entender como as pessoas se relacionam entre si a partir de seus interesses. Busco entender, basicamente, como funcionam as relações de poder.

Vamos à lista!

O Caranguejo Bola | Maria Lucia Amaral

O que: uma história no estilo Alice no País das Maravilhas. Psicodelia moderada e altas aventuras. São crianças que conhecem um caranguejo na praia, ficam do tamanho dele e entram no mundo dele através dum buraco, ou seja, tudo aquilo que nossos pais nos dizem para evitar: alucinógenos e convites de estranhos.

Quando eu li: final dos anos 90.

Por que mudou tudo: foi o primeiro livro que eu lembro de ler. Acho que li umas 15 vezes depois disso.

Sherlock Holmes | Sir Arthur Conan Doyle

A casa do Sherlock existe de verdade e dá pra ver no street view.

O que: as investigações do detetive cheiradaço e do seu amigo médico com stress pós-traumático que recebeu como condecoração no Afeganistão.

Quando eu li: meados dos anos 2000.

Por que mudou tudo: foi o meu primeiro contato com literatura de aventura, com uma construção bem feita de personagens e com uma série de muitos livros. Também foi, depois, a primeira obra que eu li na língua original. Como era um contexto muito diferente (geralmente, a Inglaterra do último quarto do século XIX), eu tive que desenvolver a imaginação para criar os cenários.

O Tempo e O Vento | Erico Verissimo

Manuscrito original. Centro Cultural CEEE Erico Verissimo.

O que: a narração épica da formação do Rio Grande do Sul, sob a ótica de uma família que vai atravessando os séculos e permeando diversos fatos relevantes da história.

Quando eu li: lá por 2012.

Por que mudou tudo: é, possivelmente, a obra que mais gostei de ler na vida. Tem alcance universal. Verissimo conseguiu fazer uma obra prima atemporal mesmo com todas as peculiaridades da História e do vocabulário regionais. A construção dos personagens (que não são poucos) é complexa, primorosa e requintada. Tem nuances e obviedades que são difíceis de encontrar numa narrativa.

Raízes do Brasil | Sérgio Buarque de Holanda

O que: explicação sobre como o Brasil se formou como nação e como sociedade.

Quando eu li: no ano do 7 a 1.

Por que mudou tudo: mais enxuto que Casa Grande e Senzala, foi uma boa iniciação. Deu uma boa ideia da diferença entre as origens de brasileiros e outros povos da América espanhola. Muito acessível, foi uma leitura leve e que se manteve viva de uma maneira impressionante.

Memórias de Garibaldi | Alexandre Dumas

O que: a vida nada monótona do herói de dois mundos narrada pelo seu amigo Alexandre Dumas. Só isso.

Quando eu li: final dos anos 2000.

Por que mudou tudo: esse livro está na lista porque foi uma das primeiras leituras que me trouxeram surpresa sobre alguém. Eu sabia da importância do Garibaldi tanto no RS quanto na Itália, mas não tinha a real dimensão disso. Também sabia pouco sobre as andanças libertárias dele pela América e desconhecia o processo italiano. Mais ainda, foi interessante para entender como se criou o mito de Garibaldi: o homem vestindo trajes gaúchos na Europa, que deixava os líderes militares de cabelos em pé. Se não fosse o empurrãozinho do Dumas, não sei se Garibaldi teria tamanha repercussão como tem. É um relato interessante especialmente para quem gosta de viagens e de aventura em geral. E por falar em viagem…

Cem Dias Entre Céu e Mar | Amyr Klink

Amyr no IAT. Foto do próprio Amyr Klink.

O que: a primeira grande viagem de Amyr Klink. Atravessou o Atlântico da Namíbia à Bahia remando sozinho num barco projetado e construído por ele mesmo. E eu achando o máximo ter ido ao Chile de moto (coisa que ele fez antes de se meter nessa loucura também).

Quando eu li: 2018.

Por que mudou tudo: sempre fui fascinado por livros de viagens. Lembro que Robinson Crusoé foi marcante, inclusive poderia estar nessa lista. Mas foi lendo o Amyr que eu fiquei mais impressionado. Primeiro pela história dele (economista, desiludido ainda quando era estagiário, tocou o foda-se e resolveu fazer o que realmente o tocava). Segundo porque me vi em muitos dos questionamentos e em muitos dos peitaços que ele deu. Foi um misto de inspiração e reflexo, ainda que numa escala muito pequena. Certamente foi um ponto de inflexão ler os relatos dele, e o que eu tirei dessa leitura vem pautando muito a minha vida nos últimos tempos.

O Sol Também se Levanta | Ernest Hemingway

O que: uma viagem muito louca de uns americanos e uns ingleses radicados em Paris no entre guerras. Vão até Pamplona, na Espanha, participar das festas de touradas. No caminho, vão parando em tudo que é canto para tomar umas garrafas de vinho e incomodar todo mundo.

Quando eu li: final dos anos 2000.

Por que mudou tudo: descobri que esse era o primeiro romance do Ernestinho só depois de terminar a leitura. A história por si só já é muito sedutora: uma viagem entre amigos bons vivants no charmoso período entre guerras. O que me prendeu, além do óbvio, foi a construção dos personagens e a descrição das cenas, tanto as de Paris quanto as da viagem. Era sensacional: a descrição das mesas, dos vinhos, das conversas, das dores de cabeça. Que homem este Ernest.

Crônica de uma Morte Anunciada | Gabriel García Márquez

O que: uma história meio de trás pra frente sobre a morte de um ilustre morador de uma cidadezinha.

Quando eu li: começo dos anos 2010.

Por que mudou tudo: foi meu primeiro contato com o Gabo. A história já começa eletrizante porque não se entende muito bem a situação. Conforme vai passando, te prende. O livro é curto, então o desenvolvimento é rápido. Foi quando eu descobri que a estética latino-americana me atraía muito, e imaginar as cenas de calor, de tensão e de drama era uma experiência muito rica.

O Estrangeiro | Albert Camus

O que: um cara perde a mãe e não expressa muitas emoções. Aí viaja e mata um cara, é julgado e preso. Mais ou menos por aí.

Quando eu li: final dos anos 2000.

Por que mudou tudo: eu odiei o livro. Me forcei a terminá-lo na época. Reli uns anos depois e entendi o porquê. Fora o primeiro livro que tinha me feito ler as entrelinhas, além da estética e do enredo. A questão da alegada misantropia do protagonista foi difícil para mim. Eu tinha achado que era só uma história simples, apesar de bem escrita. Claramente, de simples não tinha nada. Camus falou da humanidade inteira naquele livrinho fino.

O Mestre e Margarida | Mikhail Bulgakov

Bem tranquilo.

O que: o diabo e seus amigos visitam a Moscou dos anos 1920. Um deles é um gato gigante. Conforme as pessoas vão conhecendo o grupo, vão sendo internadas por estarem loucas.

Quando eu li: meados dos anos 2010.

Por que mudou tudo: é uma ode à psicodelia. A história é excelente e tem tons bizarros, o que a torna mais fascinante ainda. Eu já havia me encantado com a doideira dos livros do Caroll, mas o Bulgakov foi muito mais longe. Pode soar bobinha a história, mas é muito interessante. É uma leitura confusa, sinuosa, quase delirante às vezes. Recomendo fortemente.

O Cavaleiro da Armadura Enferrujada | Robert Fisher

O que: uma fábula em que um cavaleiro vaidoso se vê preso na sua armadura. Sai em busca de respostas e acaba encontrando bem mais.

Quando eu li: 2019.

Por que mudou tudo: me arrisco a dizer que é um livro de autoajuda. Azar. Esse livro caiu na minha mão de maneira muito peculiar: enquanto eu estava numa livraria comprando um livro, um senhor me parou do nada e disse que eu tinha que ler o livro que ele estava comprando. Ele viera de alguma cidade do interior para comprar o livro e dar de presente a um amigo que não via há décadas. Ele me convenceu de pronto. Não comprei na hora porque só havia um. Li depois e foi sensacional. Faz a gente olhar para si mesmo e foi bom me ver em vários dos problemas por que passava o cavaleiro. Hoje, esse livrinho despretensioso é bastante presente nas minhas reflexões.

Por que eu resolvi compartilhar isso

Saber o que uma pessoa leu, o que ela escuta, o que mexe de fato com ela é importante para entendermos seu funcionamento. Sempre pergunto o que as pessoas leem, caso elas tenham o hábito.

Coloquei a época em que eu li para que fique mais ou menos claro qual era o contexto. Como tenho 26 anos, dá pra ter uma ideia do momento em que eu estava no decorrer de cada livro.

Claro que há mais livros que fizeram toda a diferença, mas a lista ficaria desnecessariamente longa. Também devo ter cometido algumas injustiças, mas tudo bem. Espero que venham mais livros que mudem a rota de navegação. Leitura sem disrupção é só um monte de palavras empilhadas.

Ah, e se a gente se topar pela rua, me diz quais foram os livros que mudaram tudo pra ti!

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Leonardo Ritta
Leonardo Ritta

Para escrever bem, é preciso ter a coragem de escrever mal.