O que vem depois do coronavírus?

Futurologia de boteco num trago com Aldous Huxley

Leonardo Ritta
Leonardo Ritta
5 min readApr 7, 2020

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Escrevo no meio da epidemia no Brasil. Possivelmente ainda não chegamos ao nível mais crítico, mais gente morrerá, mais gente ficará doente e mais gente falará bobagem. Temos um embate corrente entre as autoridades políticas e as fontes científicas do mundo. Veremos aonde isso levará.

Mas acho que já cabe pensarmos sobre o que vai sair disso tudo. Afinal, já não é segredo que a pandemia vai ilustrar livros de História dos que vierem depois de nós.

Antes de passar ao exercício, lembro que escrevo duma perspectiva de classe média, assalariada e com condições de vida bastante acima da média do planeta e do Brasil. Provavelmente mais ou menos como tu que me lê aí do outro lado da tela.

Pensei em dividir o texto em impactos de curto, de médio e de longo prazo, mas não sei se consigo. Então, vou pensar alguns aspectos mais ligados às áreas onde me sinto mais à vontade de falar.

Primeiramente, um questionamento e uma resposta curta e tosca: por que a H1N1 não foi uma celeuma como agora?

Porque o vírus era menos agressivo e tinha transmissibilidade menor. Além disso, tinha cura. Em resumo, matou menos. Hoje, lidamos com algo novo e ainda sem cura. Tem outro ponto importante que não pode passar em branco: em 2009, vínhamos do enorme tombo da economia global, que se agravaria ao longo daquele ano. Havia uma preocupação anterior, que ocupava planejamentos de gestores públicos e manchetes de jornais. Ok? Agora, ao corona.

O que acontecerá em termos gerais?

As economias encolherão, empresas quebrarão e pessoas perderão o emprego. Escrevo no futuro mas poderia muito bem estar escrevendo no presente. Já está acontecendo. Isso fará com que, de início, haja preocupação com a retomada das atividades e normalização das relações econômicas.

Naturalmente, alguns setores se beneficiarão, e creio que o setor financeiro forrará os bolsos. Mas acho que começa a soar um sinal de alerta para uma economia completamente desregulada, concentradora de capital e de potencial de reação em casos como esse.

Governos austeros terão de gastar. Governos liberais intervirão na economia de forma tão profunda que farão Atlas encolher os ombros até sentar no cantinho. Pessoas com menos renda, em situação de vulnerabilidade social, pequenos empreendedores e famílias monoparentais devem ser as primeiras a ser atingidas, e, infelizmente, as que serão golpeadas de forma mais contundente.

Muda alguma coisa na nossa vida prática?

Nosso modo de produção, principalmente depois do advento e da disseminação da indústria, fez com que separássemos definitivamente nosso local de trabalho do nosso local de habitação. Mudamos momentaneamente isso no tempo de quarentena. Alguns surtaram, outros surtaram pouco. Há de se redescobrir como é ficar em casa consigo e com os seus.

Acredito que seja um processo razoavelmente fácil para o cidadão médio, especialmente os do setor de serviços. A indústria, naturalmente, será sempre pioneira em tecnologia e razoavelmente atrasada em termos de recursos humanos. Há quilômetros de artigos falando sobre como passar o tempo em casa, como ser mais produtivo, etc.

Acontece que isso tem implicações da perspectiva da infraestrutura, e, em 2020, isso tem impactos geopolíticos sensíveis. Já não é de hoje que o home office é praticado por setores da economia. Ninguém inventou a roda ao ligar o PC de pijamas tomando café no sofá. O que já vinha ocorrendo, então, agora se mostrou razoavelmente efetivo, e a situação escancarou os gargalos para que o processo seja mais natural. Esses são os obstáculos que gerarão soluções nos tempos que sucederem a pandemia.

Nem todo mundo tem Home office. Como tornar esse privilégio algo inclusivo e não excludente? Imagem tirada diretamente dum grupo de tiozão do whatsapp.

Esse período de isolamento social deve servir como catalisador para melhorias em infraestrutura de telecomunicações, especialmente o 5G. Isso pode acarretar atritos entre China e Estados Unidos, embalados por uma guerra comercial e por uma queda de braço pela hegemonia global.

Acredito que o blockchain deva se difundir de vez para garantir processos remotos seguros em todas as áreas. Isso é um ganho de produtividade enorme.

Enfim, acredito que as relações de trabalho chegaram a um momento de mudança. Haverá disputa entre os interesses de empregadores e de empregados e haverá a necessidade de novas legislações trabalhistas. Obviamente, todos voltaremos aos escritórios, às fábricas, etc. Mas a quarentena mostrou que é razoavelmente possível fazer com que as pessoas trabalhem em casa pelo menos em uma parte do tempo. Novamente, o último setor a sentir isso será a indústria. Quem sabe o 5G difunda a internet das coisas nos parques industriais e a dinâmica mude. Vejamos.

Isso tudo, claro, depois de já mitigados os primeiros impactos do vírus. Ainda não sabemos até onde vão esses impactos, apenas sabemos que não serão poucos nem superficiais.

E no mundo, deve mudar alguma coisa?

Viemos de um histórico recente do aumento do tom protecionista de governos importantes para o sistema internacional. Questionamentos sobre o multilateralismo, políticas de preservação de economias nacionais e discursos ufanistas começaram a ser vistos onde antes se via uma abertura praticamente total ao planeta.

Esse “egoísmo” deve piorar em termos econômicos, caso a situação pandêmica se acentue. Países farão valer sua vontade, protegendo mercado e utilizando métodos predatórios para comprar o que for necessário.

We need masks, we don’t want others getting them. (Donald Trump)

A ‘luz no fim do túnel’ é fator anímico das populações, que deve ser levado em conta. Da mesma forma que o indivíduo é sujeito de Direito Internacional, hoje opina de forma contundente sobre temas externos, com um alcance muito maior do que uma mera mesa de bar. Histórias de solidariedade, de recuperação de infectados e narrativas do gênero influenciam a visão das pessoas, o que pode vir a arrefecer grandes rusgas internacionais.

Ainda não entendi se isso levará a uma maior diluição das cadeias globais de valor ou se guiará os países a tentar verticalizar a produção de produtos considerados cruciais, seja para fins estruturais, seja para momentos de crise. Na primeira opção, veríamos, a médio prazo, complexos industriais especializados em partes de processos produtivos, enquanto na segunda, uma tentativa desesperada de se produzir os produtos de maneira integral em território nacional. No atual ponto da economia global, parece pouco factível a segunda opção.

E, no fim, fica algo de bom?

Sinceramente, acho irresponsável romantizar uma pandemia global que custa a vida de milhares de pessoas. Acredito que muita gente pode repensar o modo de viver, fruto de privilégios que vêm de antes do coronavírus. É um movimento que deve nascer brusco, terá mudanças sutis e outras profundas, que vão ser em parte assimiladas à nova realidade e em parte engolidas pelo ritmo de vida normal que retornará.

Mas não nos enganemos: não sairemos disso mais humanos, pelo menos não a longo prazo. Tão logo os níveis de consumo voltem ao esperado -demore o que demorar-, os níveis de poluição crescerão, a preocupação de todos com dinheiro, trabalho e afazeres domésticos voltará ao normal. O capital, como sempre, se moldará ao admirável mundo novo, seguirá crescendo, se concentrando e trazendo novos questionamentos.

Mas que não é só uma gripezinha, acho que quase todo mundo já entendeu.

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Leonardo Ritta
Leonardo Ritta

Para escrever bem, é preciso ter a coragem de escrever mal.