Taxar livros é apenas um sintoma

O que significa cobrar impostos de um instrumento tão poderoso?

Leonardo Ritta
Leonardo Ritta
6 min readApr 9, 2021

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Em épocas de ausência de políticas públicas inclusivas, não surpreende que esteja sendo discutida a taxação de livros, cuja produção, hoje, é isenta. Enxertado numa discussão sobre a -mais do que- necessária reforma tributária, o novo tributo chamado de contribuição sobre bens e serviços (CBS) também incidiria sobre livros.

O argumento? Livros são coisa de gente rica. É sério. O governo até preparou um ‘perguntas e respostas’ sobre o novo tributo. A pergunta número 15 do documento fala o seguinte:

“De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros nãodidáticos e a maior parte desses livros é consumido pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos.

Neste sentido, dada a escassez dos recursos públicos, a tributação dos livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objetivo de políticas focalizadas, assim como é o caso dos medicamentos, da saúde e da educação no âmbito da CBS.”

Pode ser que a proposta seja apenas um elefante na sala, que vai ser retirado por alguém que vai colher os frutos políticos desse movimento. Política tem dessas. Mas eu acho que não é, e explico os porquês.

Mesmo isentos de impostos, livros ainda são caros no Brasil. Acredito que tenha a ver com a elasticidade da demanda, que, de fato, é composta em grande maioria por pessoas com mais renda disponível para bens não essenciais. Deve ser caro produzir um livro, como é caro produzir quase tudo num país de ineficiências. Isso também influencia o preço final.

Dada a natureza do livro e dos padrões de leitura no país, é pouco provável que haja o que chamamos de efeito renda: se os preços dos livros diminuíssem e tudo mais se mantivesse constante (como a renda das pessoas, por exemplo), a demanda por livros não aumentaria enormemente de um dia pro outro.

Esse crescimento não aconteceria, principalmente, porque os preços não são o primeiro problema a ser enfrentado. Segundo o Instituto Pró-Livro, o brasileiro leu, em média, 2,6 livros em 2019. Os motivos? Abaixo, colo um slide na íntegra da pesquisa realizada pelo Instituto.

Fonte: Instituto Pró-Livro

Estes números são apenas os dos leitores. Os dos não leitores segue padrões semelhantes, como se pode ver abaixo:

Fonte: Instituto Pró-Livro

Os preços dos livros, em ambos os casos, não são o primeiro fator lembrado na pesquisa. Falta de tempo, de gosto, de paciência e de disposição vêm antes. Isso mostra que a redução do preço sozinha não vai trazer os benefícios desejados.

É necessário que a defesa de preços acessíveis para livros seja parte de uma política pública multidimensional.

Isso significa que o governo está correto em taxar os livros? De maneira alguma. Essa ação mostra, novamente, total ausência de apreço pela Educação. Aqui, fica claro que a taxação dos livros é um sintoma da institucionalização da desigualdade social no Brasil. A seguir, eu explico por que isso parece ser parte de um comportamento recorrente, que penaliza quem tem menos dinheiro.

A Receita Federal do Brasil também tem um estudo muito interessante sobre a estrutura tributária do país, em que a compara com outras nações. A última edição disponível, de 2018, traz informações muito interessantes. Vamos analisar um gráfico um pouco poluído, mas muito esclarecedor. Ele vai nos ajudar a explicar a situação dos livros.

Fonte: RFB

A qualidade não é das melhores, mas fica fácil de ver. O Brasil está na quarta linha (ordem alfabética. Países da OCDE). Notou que a barra azul é uma das menores? Ela é a tributação de renda, lucros e ganho de capital. No Brasil, a carga tributária sobre renda, lucro e ganhos de capital é de 7%. Empatamos com o Chile. Mais baixo do que isso, apenas Polônia, Hungria e Eslovênia (6,9%) e Eslováquia (6,8%).

Fonte: RFB

Sabe a linha roxa, na parte à direita do gráfico? É a carga tributária sobre bens e serviços. Basicamente, é o quanto o consumidor paga para, de fato, consumir. Notou que a do Brasil é muito maior do que as demais? Pois é. Os 14,3% brasileiros só perdem para Dinamarca (14,6%), Grécia (15,4%) e Hungria (16%).

Fonte: RFB

Recomendo a leitura do arquivo. Apesar de os dados serem de 2017, mostram uma realidade ainda em voga. O Ministério da Economia afirma que o CBS tende a amenizar desigualdade fiscal, onerando rendas mais elevadas e aliviando rendas mais modestas. Não tenho tanta certeza.

O que fica deste emaranhado de gráficos é que pode-se argumentar que o Brasil onera demasiadamente o contribuinte. Mas, mais do que isso, a discussão é qualitativa: o Brasil onera de forma errada e excludente. Somos um leão para taxar o consumo das famílias (desde alimentos básicos até itens supérfluos) e um gatinho para taxar lucros e ganhos de capital.

Significa que temos que tomar os meios de produção? Não. Significa que não faz sentido cobrar quem alimenta o setor produtivo para aliviar quem tem tudo para alocar recursos em ativos financeiros, ao invés de investir em capital produtivo. Não se trata de pesar a mão em quem emprega e produz, mas, antes, de observar qual é a finalidade da nossa estrutura tributária.

O que isso tem a ver com a taxação dos livros?

Tudo. Se taxamos famílias que estão sendo jogadas novamente na pobreza, com a falta de estratégia de combate à crise do novo coronavírus, como esperar que se pense no livro como um vetor de mudança da triste realidade brasileira?

A desigualdade é histórica, crônica e institucionalizada no Brasil. É praticamente um projeto. Tributar quem consome é absurdo. Nossa tabela de imposto de renda é uma vergonha. Tributar livros é só um sintoma deste projeto. Não que seja de caso pensado, não que seja deliberado. É estrutural.

Mas parece que a diminuição da desigualdade deixou de ser prioridade. Parece que voltamos a enxergar a pobreza como algo unidimensional, relacionado apenas a questões de renda.

Nosso problema tem mais de uma dimensão. Não adianta apenas baixar os preços dos livros, simplesmente para ouvir um “eu avisei” dessa turma. Desde cedo, temos que mostrar para nós mesmos que existem livros que falam a nossa língua. Que eles podem ser nossos (melhores) amigos. Que podem ser nossas armas.

Estão tentando afastar ainda mais a maioria dos brasileiros de uma ferramenta tão importante. Ao invés disso, temos que usá-la de ponte.

Estão tentando matar os meus melhores amigos. Eu não vou ficar quieto. Quero apresentá-los aos que vêm depois de mim.

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Leonardo Ritta
Leonardo Ritta

Para escrever bem, é preciso ter a coragem de escrever mal.