Como tomar menos rasteira do seu cérebro nas tomadas de decisões de produto?

Franklin Lucas
Lett
Published in
7 min readAug 25, 2021

Há algum tempo, eu estava conversando com um time da Lett e ouvi a seguinte frase: “vamos entregar a funcionalidade X por que é fácil”, e outra dizendo “vamos terminar a funcionalidade Y por que já começamos”. Esses são dois exemplos de heurísticas, que podem ser falaciosas. Você deve estar se perguntando: “Hã?!”. Calma, eu já explico.

Heurísticas

Não sei vocês, mas eu gosto de aprender com exemplos. Então, vamos nos debruçar sobre o seguinte exemplo pra entender o que são heurísticas.

Digamos que você tenha que comprar um carro, e tem pouco tempo pra decidir sobre que carro comprar. Pense em como você responderia à seguinte pergunta: “qual o melhor carro para mim?”.

Algumas pessoas vão buscar, dentro de seu orçamento, o carro mais vendido, ou aquele que ela mais vê na rua, ou o indicado por aquele familiar que entende de mecânica. Em cada um desses casos, a pessoa está tentando responder à pergunta original através de perguntas substitutas (“qual o carro mais vendido?”, “qual o indicado por fulano?”). Essas perguntas, apesar de úteis, não são a pergunta original. A essas perguntas substitutas, damos o nome de heurísticas.

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Heurísticas podem ser úteis, como vimos no exemplo anterior, mas temos que ter ciência de que elas não respondem à questão original. E, sabendo disso, devemos escolher muito bem quando começar e quando parar de utilizá-las. Algumas vezes, recorremos a elas sem necessidade. Outras, elas são tudo o que temos. Em qualquer um dos casos, elas podem nos ajudar, mas também podem nos “passar a perna” — quando se tornam falaciosas.

Falácias

Pra entender o que é uma coisa falaciosa, vamos mergulhar um pouco na metodologia científica. Nesta prática, propõe-se uma hipótese e modela-se situações (testes, experimentos) para testar a validade da hipótese. Tentamos verificar se a hipótese vale para todas as situações possíveis, submetendo ela a testes que poderiam fazê-la falhar.

Um exemplo são as Leis de Newton. Newton formulou frases e fórmulas matemáticas que descreviam muito bem o comportamento dos corpos que ele podia observar. Elas eram verdade para tudo que se podia medir e nenhum teste físico falhava àquelas leis. Com o passar do tempo, no entanto, foi possível perceber fenômenos que desafiavam estas leis, como o movimento da luz, mas isso é assunto pra outra hora.

Falando sobre a metodologia científica em um espectro mais amplo, se hipótese X é verdade para todas as situações e não falha para nenhuma situação, podemos aceitar a hipótese X como uma teoria, pois ela é verdade sempre.

Alternativamente, se a hipótese X é verdade para 99 casos mas falha para 1 caso, não podemos transformar a hipótese X em teoria, nem afirmar que ela é verdadeira.

Você deve estar se perguntando: “Beleza, mas o que tudo isso tem a ver com falácias?”. É exatamente a partir do parágrafo anterior que vou derivar um tipo de falácia. Esta falácia tem a seguinte estrutura: se você não pode provar que a hipótese X é verdadeira, então ela é falsa. Parece fazer sentido? Vamos testar!

Vou recorrer a uma nova pergunta, dessa vez muito filosófica: “Deus existe?”. Aplicando a falácia anterior, podemos formular que:

“Deus não existe porque você não pode provar que ele existe.”

Felizmente, a mesma falácia nos permite formular que:

“Deus existe porque você não pode provar que ele não existe.”

Percebe o problema? Essa estrutura lógica (se você não pode provar que a hipótese X é verdadeira, então ela é falsa) é falaciosa, pois não leva a conclusões úteis ou verdadeiras para a solução de problemas.

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Veja outros tipos de heurísticas falaciosas (agora vamos juntar os dois conceitos):

Falácia 1: Apelo à autoridade

Pizza de calabresa é a melhor porque Einstein disse isso.

Eu tenho grande admiração por Einstein, mas a opinião de um grande físico não é uma boa heurística para a escolha do sabor da sua pizza. Se estivéssemos falando de uma questão relacionada à física e eu não conhecesse nada sobre física, eu tomaria a palavra de Einstein como verdade para estes assuntos a qualquer momento.

Esse é um exemplo de situação em que a heurística é tudo que tenho. Mas se posso me aprofundar na física, o melhor é eu testar por mim mesmo, ou eu mesmo analisar o corpo de estudos científicos relacionados e tomar minha decisão.

Agora, uma polêmica (esta última, querido leitor, deixo pra você mesmo refletir):

Isso é verdade, pois o Presidente da República disse assim.

Falácia 2: Ad hominem

Não quero nem ouvir o que a Presidente da República tem a dizer. Eu odeio-a, é um ser desprezível. Pra mim, é mentira e ponto.

Veja a heurística subjacente: o que "a Presidente da República" disse é verdade? Não sei, mas não gosto dela, então deve ser mentira. Ad hominem é uma heurística falaciosa que substitui a análise do fato pela análise do indivíduo, normalmente o interlocutor.

Vieses

Imagine uma pessoa hipotética, um sujeito tímido, franzino. Se você tivesse que deduzir sua profissão, qual das duas opções escolheria:

  1. É um fazendeiro
  2. É um bibliotecário

A maioria das pessoas (em um estudo científico onde se aplicou essa questão) escolheu a opção 2. No entanto, há muito mais pessoas fazendeiras do que bibliotecárias. Por que, então, é instintivo apostar em uma opção muito menos provável? Estes são nossos vieses agindo.

Nosso pensamento busca atalhos e toma decisões rápidas, ignorando a lógica, utilizando heurísticas substitutas que coincidem com nossa experiência anterior, ou com diversas características humanas que nos influenciam (ou, em outras palavras, nos enviesam).

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Esta situação que descrevi é ação do viés da coerência — nosso cérebro ignora as estatísticas em favor da coerência da história. Formulação geral: apesar de X ser muito mais provável que Y, faz mais sentido, na minha cabeça, que Y seja verdade, portanto Y é verdade.

Método científico — correlação, causalidade e mecanismo

Outros conceitos correlatos aos apresentados e que são úteis de serem apresentados brevemente são os de correlação, causalidade e mecanismo.

No processo decisório, vamos encontrar situações correlatas e precisamos verificar se há relação de causa e efeito (não vou me aprofundar na diferença entre os dois), mas nem sempre precisamos entender o mecanismo por trás da causalidade. Parece confuso? Veja um exemplo:

Uma droga é desenvolvida para o tratamento de câncer. Farmacêuticos e químicos manipulam substancias que interferem no processo de reprodução celular e verifica-se que células tumorais regridem 100 vezes mais rápido na presença desta droga. Verifica-se também que a pressão arterial do paciente é reduzida na presença da droga e que sua utilização a longo prazo é segura. Devido a essa descoberta, testes com esta droga são conduzidos em pacientes hipertensos, mas sem câncer, e os resultados de pressão arterial são satisfatórios. Apesar de não se saber como esta droga age sob a pressão arterial, ela passa a ser adotada no tratamento de hipertensão, bem como no tratamento do câncer.

Ou seja, percebe-se inicialmente, uma correlação — pacientes de câncer sobre o efeito da droga X experimentam redução na pressão arterial. Em testes, percebe-se causalidade — ao interromper o uso da droga, a pressão volta a subir, entre outros testes. Não se sabe, no entanto, o mecanismo de ação da mesma — por quê a droga reduz a pressão dos pacientes? Se estamos buscando drogas terapêuticas, nem sempre precisamos ter total clareza sobre os mecanismos de atuação das mesmas, mas sim de seus efeitos.

Qual a importância de tudo isso?

O processo de desenvolvimento de produtos é um processo de decisão. A pergunta central do processo de discovery de produtos é: o que vale a pena desenvolver?

Teresa Torres, uma das maiores referências em discovery, se inspira muito em um livro chamado “How we think”, de John Dewey, que se debruça sobre essas e outras questões de processos mentais. Este não é um livro sobre produto. Nunca li o livro em questão, mas recomendo outro que aborda estas mesmas questões em grande profundidade: "Rápido e Devagar", de Daniel Kahneman.

Interdisciplinaridade e diversidade

Perceba, leitor, como tudo que foi aqui discutido é interdisciplinar:

  1. Falamos de lógica, de matemática — da “área de exatas”
  2. Falamos de falácias, da filosofia — da “área de humanas”
  3. Falamos de heurísticas e vieses — da Psicologia, Neurociência e Biologia (sim, nossa Biologia nos enviesa!) — das “áreas de humanas e biológicas”

Diversidade (a exemplo, de formações) é crucial para um bom processo decisório. Percebe?

Conclusão

Agora que você já entende o que são vieses, heurísticas e como elas podem ser falaciosas, você desenvolveu um sentido mais aguçado para perceber quando você (ou outras pessoas) estejam caindo em armadilhas cerebrais em um processo de decisão.

O simples fato de entender o que está se passando em sua mente te torna muito mais apto a perceber suas falhas. Da próxima vez que estiver em um processo de discovery, reflita bem sobre qual a pergunta principal que deseja responder, quais heurísticas estão sendo utilizadas para apoiar sua descoberta, se você está sob efeito de algum viés, se alguma lógica pode ser falaciosa, quais são as variáveis que possuem relação de causa e efeito entre si e, principalmente, entenda que o pensamento crítico de qualidade é interdisciplinar.

Photo by Einar Storsul on Unsplash

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